Logo na primeira cena, For All Mankind estabelece uma realidade muito diferente da nossa. A série da Apple TV+ abre em 1959, com a população dos Estados Unidos fixada em frente à TV, assistindo a União Soviética pousando na Lua antes dos norte-americanos. A partir disso, a história daquele mundo se torna outra: a corrida espacial continua intensa e, assim como foi no nosso mundo, a tecnologia avança bastante em resposta.
Na quarta temporada, que acabou de estrear no serviço de streaming da maçã, o seriado chega ao ano de 2003 com uma sociedade completamente diferente. A disputa entre norte-americanos e soviéticos virou parceria para colonizar Marte, junto com empresas privadas. Mineração espacial e energia nuclear limpa desbancaram o petróleo e adiaram o aquecimento global. Chamadas de vídeo, carros elétricos e muito mais são parte do cotidiano desde os anos 1980.
Ainda que esteja imaginando uma sociedade retrofuturista, For All Mankind nunca deixa o rigor científico de lado. A série constrói uma versão alternativa do nosso mundo a partir de possibilidades reais, caminhando no delicado equilíbrio de agradar os dois lados do termo ‘ficção científica’. “Não temos nenhum contato com a NASA, mas tudo que fazemos é com base em pesquisas, coisas que fizeram ou que tentaram no passado, ou que não conseguiram fazer por qualquer motivo”, explicou Maril Davis, produtor-executiva, em entrevista ao NerdBunker. “Tentamos nos manter alinhados a isso.”
Ainda que a agência espacial dos EUA não colabore diretamente com a série, são ex-astronautas que ajudam a garantir o realismo científico da trama. Um deles é Garrett Reisman. Engenheiro por formação, o norte-americano já foi ao espaço três vezes, passou quase 100 dias na Estação Espacial Internacional e performou várias caminhadas espaciais. Hoje, além de ser conselheiro sênior da SpaceX, Reisman é o principal consultor técnico de For All Mankind.
Em papo com o NerdBunker, o ex-astronauta explicou a função que desempenha na série, ao lado de uma equipe igualmente capacitada: “Como consultores técnicos, nosso trabalho é manter a série com os ‘pés no chão’, o que é irônico considerando que é uma série sobre voar no espaço”, brincou. “É sobre manter tudo com base na realidade. Os criadores querem que a série ainda seja realista, mesmo que se trate de uma realidade alternativa.”
Segundo ele, o respeito pela ciência ajuda na assimilação do lado mais fantástico da produção, para que a atenção do público não seja desviada do lado mais dramático:
“Na quarta temporada, o nosso 2003 já é muito mais avançado que onde estamos em 2023. É uma tarefa difícil fazer com que o público suspenda a descrença para acreditar nessa trama, e é ainda mais difícil violando as leis da física.
Isso que torna [a série] diferente de outros programas sci-fi, que fazem o que bem entendem, sem apego à história e à física. Queríamos transmitir a sensação de que a série é uma história alternativa que, potencialmente, poderia ter se tornado realidade.”
Ciência alternativa
O problema de criar um conto de história alternativa é o efeito dominó: você começa com uma pequena mudança lá atrás, mas as consequências se acumulam até criar um mundo completamente irreconhecível. “É muito complicado acompanhar a linha temporal”, assume Ronald D. Moore, o criador e produtor-executivo de For All Mankind. “Nossa equipe de roteiristas é focada nisso, e temos uma equipe de pesquisa que ajuda a estabelecer a continuidade, mas pular de década em década é difícil. É uma enorme teia expansiva de fatos e eventos que precisamos ter em mente.”
Moore é um veterano de mundos fantásticos, tendo escrito roteiros e produzido séries como Star Trek: A Nova Geração, Battlestar Galactica e Outlander. O produtor é igualmente apaixonado por ficção e ciência, e frequentemente se vê na intersecção dos dois. Em todo o caso, ele garante que os personagens importam mais do que a ambientação, ao comparar a série atual com seus projetos passados:
“São bem similares, na verdade, porque todos consistem em criar mundos que não existem. For All Mankind, no início, era ambientada em 1959, então você começa a criar uma realidade deslocada para o público e logo desenvolve espaçonaves inexistentes e um cotidiano na Lua.
Ainda é desafiador porque é algo que não pode simplesmente ser filmado no local, então você acaba tendo que criar um mundo que só vai existir na imaginação dos espectadores.”
Para Reisman, cuja especialidade é a ciência, entender o lado da ficção foi um aprendizado que veio com o tempo. O ex-astronauta precisou entender que, apesar da enorme importância do realismo, ainda seria preciso abraçar algumas imprecisões em prol de uma trama engajante:
“Lembro que, lá na primeira temporada, falei que Wernher Von Braun, na posição de administrador da NASA, nunca ficaria no Centro de Controle de Missão. Ele estaria em Washington, D.C., ou em Huntsville, Alabama, onde administradores realmente desempenhavam suas funções. Mas aí me falaram que, na série, o elenco precisa interagir, que não daria para contar as histórias individualmente, já que é a interação entre personagens que cria um drama interessante.
Então, sim, os criadores sabiam que um administrador da NASA nunca estaria presente no Centro de Controle de Missão, mas precisavam disso para a série. É só um exemplo, mas houveram várias vezes em que foi preciso concessões para atender as necessidades da trama e do seriado, que sempre são prioridade. Sempre fui defensor de não deixar a verdade entrar no caminho de uma boa história. No fim das contas, o entretenimento e a trama intrigante são o que fazem as pessoas assistirem.”
Gente do espaço
Durante o nosso papo com os envolvidos, todos frisaram o mesmo: o coração de For All Mankind são os personagens. Para quem assiste a série, não é exatamente surpreendente. Há grande ênfase na vida cotidiana dos astronautas, e em mostrar como a corrida espacial e o avanço tecnológico moldam a vida da pessoa comum. Afinal, é interessante imaginar que cidadãos simples de realidades paralelas também são produtos de seu tempo alternativo, mas talvez essencialmente iguais a nós. É o que explica o criador Ronald D. Moore:
“Tratamos a premissa com seriedade, sem loucuras. Começamos pelo fato de que [os personagens] são humanos com quem o público possa se identificar. Por acaso são astronautas fazendo coisas incríveis, mas ainda têm esposas, maridos, filhos e problemas de família, com sonhos, esperanças e medos reais.
Enquanto esse for o foco do programa, acho que o público vai topar todo o resto, mesmo sem entender muito sobre exploração espacial. Talvez isso desperte o interesse neles, ou talvez sequer incomode, já que estão ali para ver o que acontece com essas pessoas.”
Os criadores acreditam que isso é o que torna a série tão chamativa para um público variado. Ficção científica é um gênero nichado, mas isso não impediu que o seriado se tornasse um dos sucessos de audiência do Apple TV+, rendendo quatro temporadas até o momento.
“Para mim, é que nem Friday Night Lights, que todo mundo achava que era um drama sobre futebol americano”, comparou a produtora Maril Davis. “Sinto que é o mesmo caso, em que muita gente pode achar que é uma série sobre o espaço, mas na verdade é sobre personagens. Para alguém como eu, que não é necessariamente apaixonada pelo espaço, sempre sou atraída aos personagens da série”, admite.
Ainda assim, o apego ao rigor científico é o que garante que o público mais esclarecido fique tão vidrado no programa quanto o espectador menos entendido do assunto. Aos entusiastas da corrida espacial, e de exploração espacial em geral, é um prato cheio.
Garrett Reisman reconta que as primeiras temporadas do programa, que eram ambientadas na era de ouro da NASA, retratam muito bem como foi sua experiência como um jovem astronauta, e que a era atual do seriado traz todo um novo conjunto de novidades empolgantes:
“As primeiras temporadas eram bem parecidas [com o tempo na NASA]! Retratamos a era do programa Apollo e da era Shuttle, então muito do que mostramos realmente aconteceu e são coisas que vivenciei pessoalmente. Mas, quando a terceira temporada vai para Marte e além, fomos mais longe do que a atualidade, mesmo estando no passado.
Meu trabalho se tornou mais difícil porque não posso dar respostas imediatas, com base na minha experiência, porque estamos fazendo coisas que ninguém fez de verdade. Muitas vezes preciso pensar e pesquisar bastante, o que torna minha consultoria técnica bem mais complicada – mas também mais empolgante! Temos a liberdade de inventar isso, o que nos permite ser bem criativos.”
Essa retratação precisa do passado da NASA, combinado com a materialização de um futuro promissor, fez que com que a série se tornasse bem falada entre a comunidade científica e astronautas, que conseguem ver sua complexa vivência em tela:
“Essa é uma das coisas mais gratificantes para mim. Sempre que a série vai ao ar, recebo mensagens de gente como Scott Kelly, com quem passei quase um ano no espaço, e meus antigos colegas que fizeram caminhadas espaciais comigo.
Recentemente, fui tomar café com um amigo que fez minha primeira caminhada espacial comigo, e ele estava me falando o quanto amava a terceira temporada e seus personagens favoritos. Quando outros astronautas ficam empolgados assim, é muito recompensador para mim.”
É essa junção entre narrativa e ciência, um ponto de encontro entre o público casual e os especialistas, que fazem com que For All Mankind seja especial. Não importa o seu nível de conhecimento do programa espacial ou da tecnologia usada, o seriado sempre terá algo interessante em seu rico mundo, personagens carismáticos e complexos e, claro, história paralela cativante.
Ainda assim, Garrett Reisman acredita que o seriado pode despertar aquela curiosidade científica que é tão natural do ser humano, talvez até influenciando o caminho de alguns espectadores rumo às estrelas. “Sei que meu interesse por engenharia e voo espacial em geral certamente foi alimentado por Star Trek, Star Wars e ler muita ficção científica, como Isaac Asimov e Ray Bradbury”, relembra o astronauta.
“Há uma troca interessante entre fato científico e ficção científica”, continua Reisman. “É uma relação simbiótica. Realmente espero que uma criança que hoje assiste a série se torne um astronauta no futuro. Talvez o primeiro astronauta que eventualmente pisará em Marte esteja assistindo For All Mankind agora.”
For All Mankind é transmitida pelo Apple TV+, que têm as três temporadas completas no catálogo. Já a quarta temporada é transmitida semanalmente, todas às sextas.