Vamos tirar isso da frente logo. Ursinho Pooh: Sangue e Mel, slasher baseado em um dos mais queridos personagens infantis, não é bom. Honestamente, não é nenhuma surpresa, mas também é preciso ser dito: não é um filme intragável. Isso deve significar alguma coisa, certo?

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O longa, que enfim chega aos cinemas brasileiros pela California Filmes, é obra de Rhys Frake-Waterfield, cineasta britânico com um longo histórico de dirigir, escrever, produzir e tocar os efeitos visuais de todo tipo de obra duvidosa. Um passeio por sua página no IMDb traz pérolas como The Curse of Humpty Dumpty (2021), Demonic Christmas Tree (2022), Firenado (2023), entre outros.

Aqui, o diretor se aproveita das maravilhas do domínio público. Ainda que a versão da Disney seja a mais conhecida, o Ursinho Pooh foi originalmente criado pelo inglês A. A. Milne, em 1926. Todas as obras publicadas naquele ano ou antes passaram a ser consideradas domínio público no início de 2022, e Frake-Waterfield não perdeu tempo.

Ao descobrir que o Ursinho Pooh estava na lista de mais 40 mil obras que poderiam ser republicadas, remixadas ou usadas como base sem nenhum custo, o diretor reuniu seus amigos para reimaginar a premissa infantil como um slasher, ou filme de maníaco mascarado. O problema? A ideia é tão bizarra que começou a ganhar atenção na internet, e assim chegamos em algo tão estranho como Ursinho Pooh: Sangue e Mel sendo lançado nos cinemas brasileiros.

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Com caracterização lamentável, Sangue e Mel imagina um Ursinho Pooh maníaco de slasher [Créditos: Divulgação]

Na trama, Christopher Robin — o melhor amigo humano de Pooh e seus colegas animais — cresce e decide se mudar para cursar faculdade. O problema é que as criaturas se veem desamparadas sem a ajuda do rapaz e acabam tendo que cometer atos grotescos para sobreviver a um longo inverno. Traumatizado, o Ursinho Pooh caça Christopher Robin para fazê-lo pagar pelo abandono.

É uma premissa idiota, sim. Tudo na tela transparece um filme amador feito rápido e sem dinheiro, que é o realmente é — e tudo bem. Existe uma certa apreciação irônica de filmes ruins, mas geralmente se exige que a obra em questão reconheça que é um lixo, com humor autoconsciente e piscadelas para o público. Não é o caso aqui. Sangue e Mel é uma produção orgulhosamente trash e apelativa, sem disfarçar sua baixa qualidade com sarcasmo ou qualquer coisa que a empurre para o elusivo território de “tão ruim que fica bom”.

Isso significa encarar de frente um amadorismo real. Cenários feios, uma caracterização horrenda do assassino, e atuações vergonhosas com alguns dos sotaques mais indecifráveis do horror. Afinal, é um filme britânico emulando produções norte-americanas de baixo orçamento. É impossível não reparar os defeitos, visto que o choque entre culturas e a falta de talento e grana definem o longa.

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Há alguns acertos. Por sua experiência em efeitos visuais, Rhys Frake-Waterfield entende como entregar sanguinolência digna. Há mortes conceitualmente boas, nojentas e até bem executadas. Além disso, há todo um segmento em animação que é surpreendentemente competente, ajudando a explicar as desgraças vividas por Pooh e seus amigos. E ainda que a caracterização do maníaco seja lamentável, não dá para negar a sua imponência visto que é um brutamontes violento besuntado em mel.

O maior problema de Ursinho Pooh: Sangue e Mel é se estender além da sua capacidade de manter a atenção do espectador. No cinema apelativo, menos é mais. O público compra o ingresso com expectativas bem definidas, então as enormes ‘barrigas’ em que nada acontece acabam sendo especialmente frustrantes. É um filme que precisava de mais sangue, tensão melhor ou duração mais curta. O resultado é arrastado sem nenhum dos três.

Pelo menos há algumas boas cenas de violência no lixão que é Ursinho Pooh: Sangue e Mel [Créditos: Divulgação]

Mesmo assim, é bom que essa porcaria tenha sido feita. Idealmente, filmes deveriam se sustentar sozinhos mas, nesse caso, seria um desserviço ignorar o contexto em que foi feito e o momento atual do cinema. Pegar uma obra infantil renomada e desvirtua-la com o único propósito de arruinar infâncias soa ousado na era da hipernostalgia. O que Rhys Frake-Waterfield não tem de talento, ele também não tem de vergonha na cara, e isso pode ser bom.

O cineasta entende a própria falta de habilidade mas não se mostra abalado pelas críticas ruins, como a gloriosa média de 3% no Rotten Tomatoes. Muito pelo contrário, parece ser tomado por orgulho ao ver que o lixo que criou causou tanto burburinho, rodou os cinemas do mundo todo e lucrou quase US$5 milhões na bilheteria mundial. Pare e pense por um minuto: qual outro gênero conseguiria um feito assim?

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O horror é especial porque entende que um ecossistema artístico vive a partir de suas grandes obras e das piores criações. Como bem definiu Pauline Kael, crítica de cinema e defensora da arte de procedência duvidosa: “É tão raro que filmes sejam arte de qualidade que quase não há motivos para se interessar por eles se não conseguirmos apreciar o lixo de qualidade.

Ursinho Pooh: Sangue e Mel não é lixo de qualidade, apenas uma porcaria. Mas uma porcaria que ainda conseguiu ser lançada nos cinemas do outro lado do mundo de onde foi feita. Seu diretor já planeja uma continuação e também dar o mesmo tratamento para contos como Peter Pan e Bambi.

A tendência, inclusive, se espalhou já: há um filme de terror do Grinch chamado The Mean One; e em breve haverá uma dobradinha distinta de produções sangrentas da Cinderela, sendo Cinderella’s Curse e Cinderella’s Revenge, além de Sleeping Beauty’s Massacre, com uma Bela Adormecida assassina. Novamente, qual outro gênero consegue lançar tendência cinematográfica a partir de um filme universalmente reconhecido como um lixo?

Ursinho Pooh: Sangue e Mel já está em cartaz nos cinemas brasileiros.