Ao observar as cinebiografias musicais lançadas nas últimas décadas, é interessante reparar na escolha dos títulos — estes, afinal, dizem algo antes mesmo de a primeira cena se desenrolar na telona.
Batizar o filme a partir de uma canção de sucesso do biografado costuma ser uma aposta certeira; em alguns casos, ela é capaz, inclusive, de agregar uma síntese conceitual. Bohemian Rhapsody (2018), por exemplo, traduz o lado teatral e hedonista de Freddie Mercury; Rocketman (2019), por sua vez, remete às aventuras de um astronauta, que mesclam grandiosidade e solidão, tal qual a trajetória de Elton John.
A opção mais convencional é simplesmente adotar o nome da banda, como The Runaways (2010), ou do artista — e, neste caso, não incluir seu sobrenome é uma poderosa declaração de familiaridade e magnitude. Ray (2004) e Elvis (2022) ilustram a ideia: eles precisam apenas dessas palavrinhas e de uma imagem em seus cartazes para despertar o reconhecimento do público e, ao mesmo tempo, atestar o peso dos respectivos protagonistas no imaginário coletivo.
Nesse sentido, Bob Marley: One Love fica no meio do caminho. O uso do nome teria sublinhado uma questão de identidade que o longa-metragem coloca, mas não aprofunda. Bob foi como o cantor e compositor se tornou conhecido internacionalmente (um diminutivo de Robert, nome de origem germânica e, portanto, branca e europeia, assim como seu pai, inglês). Por outro lado, sua mãe, jamaicana, o chamava de Nesta — que, como um personagem explica no filme, significa “mensageiro” no dialeto local.
Já “One Love”, a canção, teria, entre outras coisas, destacado o período que o enredo cobre: a faixa já fazia parte do primeiro disco de Marley, lançado em 1965, quando sua banda The Wailers ainda se chamava The Wailing Wailers; e foi regravada em 1977 para o álbum Exodus, seu maior sucesso comercial em vida. Curiosamente, porém, a música sequer é mencionada durante o longa, tocando somente durante os créditos finais.
A obra, por sinal, é permeada por essa oscilação entre possibilidades, intenções e recursos narrativos que concorrem entre si e acabam nunca realizados com plena eficácia. Ela abre com uma série de letreiros explicando a escalada da violência na Jamaica em meados dos anos 1970, puxada pela rivalidade entre facções políticas, e a polêmica em torno da realização de um festival de reggae capitaneado pelo cantor em meio àquele cenário caótico. A sequência inicial retrata, então, uma coletiva de imprensa em que Marley (Kingsley Ben-Adir) é questionado pelos repórteres acerca desses exatos tópicos — o que torna a contextualização textual anterior completamente dispensável.
Assinado por Terence Winter e Frank E. Flowers, em parceria com Zach Baylin e o diretor Reinaldo Marcus Green, o roteiro busca se concentrar em um recorte temporal específico, abrangendo o tal festival, a tentativa de assassinato do ídolo do reggae, seu autoimposto exílio em Londres, o processo de criação e gravação de Exodus, o sucesso do disco e a subsequente turnê europeia e, por fim, o retorno triunfal à Jamaica. A decisão é justificada, afinal, trata-se de uma das fases mais emblemáticas do artista. No entanto, ela faz com que algumas lacunas tenham de ser preenchidas por flashbacks, que nem sempre cumprem sua função ou se conectam à trama de maneira orgânica.
Mais problemática ainda é a maneira como o filme retrata o atentado à vida de Marley, no qual também sua esposa, Rita (Lashana Lynch), é alvejada. O que deveria ser um momento dramático perde qualquer carga emocional, uma vez que as possíveis consequências são logo descartadas sem cerimônia. Rita, aparentemente deixada em estado grave em um leito de hospital, na cena seguinte já aparece nos bastidores do show do marido, como se nada tivesse acontecido, dizendo “eu me dei alta”, em um momento não intencionalmente cômico.
A relação entre o cantor e a esposa, a propósito, é tratada com relativa complexidade: há parceria entre eles (construída principalmente por meio dos flashbacks), bem como uma crise um tanto difusa, que só é escancarada em uma discussão no segundo ato. Mas a infidelidade de Marley, um dos pivôs desse desentendimento, mal é trabalhada, sendo apenas sugerida em uma breve cena anterior — assim, funciona meramente como motivação de um conflito sem aprofundamento, resolução ou efeito.
O roteiro tem outros pontos questionáveis que, somados, enfraquecem ainda mais o conjunto. Há, por exemplo, o pequeno arco envolvendo Don Taylor (Anthony Welsh), empresário e amigo do artista, que tem um desfecho ruidoso, mas não traz qualquer repercussão para a história, sendo imediatamente esquecido. Ou ainda a introdução do novo guitarrista da banda, Junior Marvin (interpretado por seu filho, o também músico Davo), à qual são dedicados minutos consideráveis — porém, sem função narrativa, o personagem é logo posto de lado, junto dos demais instrumentistas, todos tratados quase como figurantes.
Todavia, é um longa de oscilações, o que significa que ele tem seus aspectos positivos. O roteiro acerta ao fazer um retrato até certo ponto elaborado (para os padrões de Hollywood) do rastafarianismo, o que ajuda a entender um pouco mais a mentalidade do cantor, calcada em uma leitura particular do judaísmo e do cristianismo e em ideais pan-africanistas. De quebra, foge dos estereótipos que envolvem o consumo da ganja, aqui normalizado como prática comunitária relacionada à religião.
Também a música se destaca entre as virtudes. Algumas ajudam a contar a história, como as combativas “Get Up, Stand Up” e “War” em momentos-chave do enredo. Outras integram a própria narrativa — embora claramente romantizada, a cena com o processo de composição da faixa-título de “Exodus” ilustra a força e o gênio de Marley como autor.
Quando “One Love”, a canção, foi regravada em 1977 (na versão que se tornou sucesso mundial), a gravadora achou por bem rebatizá-la como “One Love/People Get Ready” e dividir os créditos entre Marley e o norte-americano Curtis Mayfield, a fim de evitar eventuais disputas por direitos autorais. Isso porque, em sua música, o jamaicano cita alguns versos de “People Get Ready”, hit soul/gospel escrito por Mayfield e originalmente gravado pelo grupo The Impressions em 1965.
Entretanto, o que Marley faz não é citação, mas sim ressignificação: por exemplo, ao transformar a declaração de Mayfield de que “não há espaço para o pecador sem esperança” em uma pergunta — “não existe lugar para os pecadores sem esperança?” —, o ídolo do reggae se afasta da lógica punitiva do gospel para abraçar uma postura compassiva, em sintonia com o seu refrão que pede unidade, “um amor, um coração”. O que, no fim das contas, é representativo da filosofia de vida do artista: o que importa não é o indivíduo, o veículo, talvez nem o título, e sim a mensagem.
Bob Marley: One Love está em cartaz nos cinemas brasileiros.
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