A obra de Edgar Allan Poe é tão influente que o nome do escritor ressoa mesmo a quem nunca teve o prazer de ler algum de seus contos ou poemas. Esse renome é mais do que merecido e segue vivo não apenas nas infinitas republicações dos escritos, como também na adaptação destes para outras mídias. Uma história longa que ganha novo capítulo em A Queda da Casa de Usher, uma sangrenta e moderna celebração do legado do escritor.
O encarregado pela tarefa de trazer nova vida a um respeitado pedaço da literatura norte-americana foi Mike Flanagan, que construiu um prestígio na área de horror da Netflix graças ao sucesso de A Maldição da Residência Hill (2018), A Maldição da Mansão Bly (2020) e Missa da Meia-Noite (2021). No papel, a escolha faz sentido, já que o horror de Flanagan é carregado por um romantismo melancólico e verborrágico que casa com os melhores pesadelos descritos nas linhas pensadas por Poe. Na prática, Flanagan aproveita para trilhar o caminho mais ousado, dando um toque próprio a esse patrimônio centenário.
Na obra do escritor, A Queda da Casa de Usher é um conto de poucas páginas que acompanha três personagens ao longo de alguns dias. Aproveitando a óbvia necessidade de expandir o material-base para uma temporada de oito horas, os responsáveis o utilizam como uma espinha dorsal e preenchem essas lacunas com um passeio por outras histórias de Edgar Allan Poe.
Essa jornada transporta narrativas e poemas criados no século XIX para o presente. Nos dias atuais, somos apresentados aos Usher, família que comanda um império que começou com uma gigantesca e corrupta farmacêutica e se expandiu em outros empreendimentos diversos. Prestes a enfrentar um julgamento pela sujeira dos negócios, o clã passa por eventos macabros e sangrentos.
A decisão de situar a trama em 2023 é o primeiro passo para entender Casa de Usher como uma adaptação livre da obra de Edgar Allan Poe. Ao invés de tentar emplacar escritos em outra mídia de forma direta, a produção usa os textos como matéria-prima para criar algo novo, em um meio termo entre homenagem e novidade. Algo que pode desagradar leitores mais puristas, mas que, a seu modo, faz justiça a um autor que colocava no papel muito do mundo ao seu redor, em sua época.
Em primeiro momento, é fácil assimilar A Queda da Casa de Usher como um primo sangrento de Succession, da HBO. Afinal de contas, a produção da Netflix também apresenta um elenco de personagens tão detestáveis que a expressão “podres de ricos” se torna quase literal. Especialmente porque a série de Mike Flanagan claramente detesta esses personagens e se diverte ao fazê-los passar por grandes terrores.
Para garantir que o público embarque e se divirta com a sucessão de desgraças, o roteiro passa longe de sutilezas. O retrato dessa elite e seus excessos beira o caricatural, ao apelar para atitudes mesquinhas ao ponto de parecer forçado – ainda que esse tipo de sátira caiba bem no mundo real.
A abordagem funciona, especialmente nos episódios iniciais, mas os responsáveis agem rápido para evitar que se torne cansativa. Para escapar dessa armadilha, o roteiro investe em outras frentes. Por um lado, ele acha maneiras interessantes de encontrar humanidade até mesmo naqueles que estão além da redenção. Por outro, há toques de um humor macabro e absurdo que ajuda a navegar pelos diferentes estágios de aproximação com cada um deles.
Nesse quesito, os atores responsáveis por interpretar os filhos do patriarca Roderick Usher (Bruce Greenwood) brilham. Composto, em sua maioria, por atores que já trabalharam nos outros projetos de Mike Flanagan na Netflix, esse núcleo encontra formas interessantes de ir além da premissa de ricos fúteis e odiáveis. Suas jornadas investigam o que os tornou assim e, por vezes, dá a oportunidade para que as coisas sejam diferentes. O que nos leva de volta a Poe e ao horror.
Personagens criados para a série, os filhos de Roderick têm arcos inspirados em outros grandes contos e poemas do escritor. Ainda que se tratem de adaptações livres, elas servem para nortear a forma como a desgraceira vai se manifestar na tela. Nesse quesito, A Queda da Casa de Usher propõe um encontro entre o clássico e o moderno, usando as possibilidades do audiovisual atual para reproduzir uma atmosfera de horror criada pelo escritor há quase dois séculos.
Responsável também por dirigir boa parte dos episódios, Mike Flanagan mistura diferentes subgêneros do cinema de horror ao longo dos oito episódios. Ainda que nada seja exatamente inédito, há criatividade no planejamento, execução e entrelaçamento dos momentos assustadores e aflitivos. Um frescor que ajuda a atenuar um dos grandes problemas da produção: sua narrativa repetitiva.
Os episódios iniciais estabelecem uma dinâmica que é seguida quase que à risca por toda a minissérie. Ainda que faça sentido com a trama, que gira em torno de maldições e destinos inescapáveis, essa estrutura tem pontos baixos justamente pela sensação de se estar diante da mesma situação vivida uma hora antes. Uma barriga que só não se torna um problema pelo fio que conduz a produção.
A Queda da Casa de Usher não é meramente o conto escolhido para batizar esse pot-pourri de Edgar Allan Poe. A história dá nome à produção pelo foco que lança sobre Roderick e Madeline Usher, irmãos que a série acompanha ao longo de diferentes momentos no tempo. O próprio Roderick também chega ao posto de narrador, promovendo um verdadeiro vai e vem temporal enquanto relembra o passado em um longo relato, que vai de décadas a dias atrás.
O núcleo brilha, especialmente graças às atuações certeiras de Bruce Greenwood e Mary McDonnell como os irmãos Usher, Mark Hamill como o capanga Arthur Gordon Pym e Carl Lumbly como o detetive C. August Dupin – além de Carla Gugino, cujo papel não será elaborado para evitar spoilers. Ala mais experiente do elenco, o quarteto tem a responsabilidade de refletir os anos de uma intrincada relação de poder, traição e injustiças.
Esse fio, que une passado e presente, é fundamental para que a série seja mais do que um amontoado de desgraças e críticas rasas. Refletido por atuações no ponto, o antigo histórico desses personagens costura os principais temas da produção em um trágico conto sobre ciclos. O agredido que vira o agressor, o que se herda além de bens materiais, o que somos e escolhemos nos tornar. Questões que se apresentam embrulhadas em horror e numa sátira que não traz um pingo de delicadeza e se orgulha disso.
Em última análise, faz sentido que ciclo seja tema de uma adaptação moderna de uma obra de quase dois séculos. Afinal de contas, o empenho de autores como Edgar Allan Poe e outros mestres em criar horror e mistério se tornaram tão populares que entram no DNA de um sem-fim de obras que bebem diretamente dessa fonte, conscientemente ou não.
A Queda da Casa de Usher tem plena consciência dessa herança e brilha justamente por isso. Ao mesmo tempo em que rejeita o comodismo de recriar as obras originais mecanicamente e surfar no prestígio delas, também se esquiva do peso de comparações às quais talvez não tivesse chance. É uma série que voa com as próprias asas por uma rota ancestral, e pousa com graça o suficiente para garantir seu lugar em meio ao longo bando de corvos que assombram e encantam.