Quando William Friedkin morreu, em agosto de 2023, a internet foi tomada por histórias que celebravam a ousadia e falta de vergonha na cara do diretor de O Exorcista (1973). Em uma delas, o cineasta amaldiçoou David Gordon Green (trilogia Halloween) por perturbar sua obra-prima com O Exorcista: O Devoto, ameaçando: “Não quero estar vivo quando isso sair. Se existir um mundo dos espíritos, pretendo voltar, possuir David Gordon Green e transformar sua vida em um inferno”.
A maldição parece ter funcionado. O longa, que se coloca como sucessor do maior filme de terror da história, é uma bagunça completa, marcada por ideias retrógradas, homenagens vazias e execução precária. Todo o subgênero de exorcismo entende que nem todos são capazes de ficar à altura do tão influente clássico da década de 1970, mas o curioso de O Devoto é como o próprio se coloca nessa situação na busca da nostalgia barata.
Quando o filme começa, há o suficiente para uma trama ambientada no mesmo universo, mas que funciona por si só. Aqui, um homem chamado Victor Felding (Leslie Odom Jr.) se torna pai solteiro quando sua esposa, Sorenne (Tracey Graves), morre soterrada em um terremoto, durante as férias do casal no Haiti. 13 anos depois, a filha Angela (Lidya Jewett) tenta entrar em contato com a falecida mãe em uma ‘mesa branca’ improvisada no meio da mata, ao lado da amiga Katherine (Olivia O’Neill).
As garotas desaparecem na floresta, dando início a uma intensa busca por parte dos pais e da cidade. Três dias depois, retornam cheias de ferimentos e sem memória alguma do ocorrido. Logo fica evidente que as duas agora carregam algo maligno dentro de si. Todo esse primeiro ato de O Exorcista: O Devoto é bastante eficiente.
Por alguns momentos, parece que a obra tem personalidade. A trama tira o tempo para estabelecer a dinâmica entre os protagonistas e há tensão genuína na busca pela menina, acentuada pelo fato de que o espectador já aguarda um desfecho demoníaco para a procura. Leslie Odom Jr. (Hamilton) convence no papel de pai desesperado, cada vez mais abatido por perder sua filha. O problema surge quando as garotas retornam.
Ainda que o horror só engate mesmo a partir da possessão das meninas, é aí que O Devoto perde a mão. Desse ponto em diante, todo esforço é desesperado. As demonstrações cada vez mais explícitas (e pouco impactantes) de possessão, a religião cristã como única solução, e a forçada ligação com o passado para justificar o título de O Exorcista enterram tudo que era promissor.
Escadaria abaixo
Quando se torna um filme de exorcismos do mais genérico o possível, O Devoto demonstra não fazer jus à franquia justamente pela falta de ousadia. Tudo bem que nenhum dos filmes anteriores da saga consegue superar o original, e Friedkin já havia reclamado de todos, mas pelo menos esses eram esquisitos e únicos. O novo não é, trazendo uma massa disforme de ideias batidas que parece cuspida por uma inteligência artificial meio preconceituosa.
Toda homenagem ao clássico soa vazia, orquestrada apenas para preencher a cota nostálgica que todo sucessor espiritual precisa cumprir, aparentemente. O retorno de Chris MacNeil (Ellen Burstyn), a mãe da garota possuída Regan (Linda Blair), é lamentável: ao som da icônica música-tema, a personagem volta apenas para servir como “coach de exorcismos” para Victor, sendo rapidamente jogada de lado depois. Ela só volta na reta final para protagonizar um momento de sentimentalismo e nostalgia barata que parece saído do meio dos créditos de um filme da Marvel.
Sem um ângulo definido para seguir, o longa vaga por todo lugar-comum do gênero apenas como visitante, sem curiosidade ou vontade de se aprofundar em nada. Há uma simplificação da mitologia da franquia, que deixa para trás a dubiedade das forças do bem e do mal em prol de centralizar os problemas em uma figura qualquer de Demônio, e nos rituais cristãos, como o batismo, como única forma de salvação.
A trama até finge que se interessa pela pluralidade de crenças, com personagens que praticam a fé de formas diferentes, mas até isso acaba mal executado em momentos vergonhosos, como uma batalha final digna de filme questionável de super-heróis, até mesmo reunindo a equipe de devotos que pode muito bem ser chamada dos “Vingadores da fé” desse universo.
É um filme marcado não só pela “breguice carola”, como também por ideias questionáveis e até retrógradas. Frequentemente beira a intolerância religiosa, apresentando religiões de matriz africana com um misticismo bastante duvidoso, além de certa obsessão fundamentalista do Demônio Genérico da trama em punir personagens por escolhas pessoais do passado.
É revoltante ver que Exorcista, um clássico definido por personagens complexos de fé conflitada e da incerteza de tudo além do mundo humano, agora é reduzido a um filme calcado na paranoia do fervor religioso, que olha feio para toda forma de fé menos convencional e ainda traz retórica anti-abortista descarada em um dos momentos mais conturbados para o assunto. Se ainda não se levantou do além para assombrar os envolvidos, é certo que William Friedkin se contorce no túmulo, pelo menos.
Exorcista: O Devoto é um desastre. Além de um bom primeiro ato e de intrigantes cenas de suspense espalhadas por toda a obra, é difícil não ser tomado pelo texto raso, preconceituoso e brega que o define. É um filme que não consegue disfarçar ter sido escrito por cinco roteiristas diferentes ao mesmo tempo, soando como um emaranhado desconjuntado de clichês e ideias retrógradas que parece ter saído do Facebook de um reacionário religioso.
Pior ainda é que essa bomba não só foi cara como ainda terá sequência. A Universal Pictures desembolsou US$400 milhões pelos direitos da obra-prima de 1973. Para tentar recuperar o investimento, anunciou logo de cara uma trilogia. A estreia decepcionante de O Devoto nos EUA, massacrado pela crítica e com bilheteria pouco impressionante, fez o estúdio reconsiderar esses planos. Assim é difícil não torcer para que Friedkin tenha mantido sua palavra.
O Exorcista: O Devoto está em cartaz nos cinemas brasileiros.