Buscar o começo da franquia Mortal Kombat é algo que faz qualquer um se sentir como o Doutor Manhattan, de Watchmen. O ano é 1993 e o jogo da vez é Mortal Kombat. O ano é 2011 e o jogo da vez é Mortal Kombat. O ano é 2023 e o jogo da vez é Mortal Kombat 1. Dessa vez, porém, a ironia é reconhecida na obra.
Após os eventos de Mortal Kombat 11 (2018), repletos de tretas temporais, Liu Kang decide colocar seu recém-adquirido poder de Guardião do Tempo para uso e criar uma nova linha temporal. Esse universo é povoado por vários rostos conhecidos, mas sem o mesmo destino sangrento que o anterior — ou pelo menos é o que pensava o criador.
Ao reunir os guardiões do Plano Terreno para lutar no tradicional torneio entre as várias realidades, Kang passa a suspeitar de um motim na Exoterra e logo descobre que alguma figura misteriosa está incentivando o feiticeiro Shang Tsung a se tornar uma ameaça, mesmo contra todas as medidas de segurança do lutador.
Logo, fica evidente que a realidade perfeita de Liu Kang está fadada a seguir o mesmo destino que as anteriores. Dessa forma, o game se porta praticamente como um “sucessor espiritual”, entregando algo novo ao mesmo tempo que comenta os 30 anos de legado da franquia.
Crise nas Infinitas Terras
Ainda que se porte como um, Mortal Kombat 1 não é exatamente um reboot, e sim um remix de elementos que definiram a saga ao longo das décadas. Isso se aplica tanto para a trama que norteia o Modo História quanto nas mecânicas.
De início, o Modo História simplifica muito da mitologia enrolada da franquia ao dar novos rumos para velhos rostos. Raiden e Kung Lao são jovens fazendeiros recrutados por Liu Kang para defender o Plano Terreno em um campeonato contra a Exo Terra. A disputa, muito mais amigável que o antigo torneio que dá nome à saga, ainda conta com o reforço de Johnny Cage, um ator que passa por apertos financeiros e de relevância, e Kenshi, um mafioso que busca resgatar a honra de sua família.
Ao invés de reboot, pense em Mortal Kombat 1 como um What If…? (quadrinho e animação da Marvel), em que um universo paralelo serve para repensar personalidades e rivalidades tão icônicas da franquia. Eventualmente, tudo acaba voltando para o que é conhecido, e nessa hora a saga parece assumir que não consegue escapar do peso do legado que construiu nos últimos 30 anos. Ao invés disso, decide abraçar o fato de que sua mitologia é uma bagunça e tenta se divertir com isso, com ótimos resultados.
Talvez a experiência seja meio confusa para os novatos, o que é uma decisão muito curiosa visto que o recomeço parece ser uma forma de atraí-los. Para compensar, o texto opta por diálogos altamente expositivos, jogando a naturalidade pela janela para garantir que ninguém fique perdido. Ainda que exposição excessiva seja algo que empobrece muitas obras, aqui funciona perfeitamente por conta da duração enxuta da campanha, com cerca de cinco horas, e pela estrutura da aventura, já que tudo gira em torno de interações rápidas que estabelecem lutas, que são o verdadeiro foco do game, claro.
Aos veteranos, é um prato cheio. A trama brilha pelo contraste com as versões anteriores, como ao trazer um Johnny Cage muito mais sensível e amigável, ainda que não menos canastrão; ou então pelo fato de que antigos inimigos, como os irmãos Scorpion e Sub-Zero, aqui são aliados.
Quando a nova realidade começa a mostrar sinais de que seguirá rumos já conhecidos, serve apenas para reforçar o que são as bases dessa franquia. Assim como BioShock sempre terá um farol, um homem e uma cidade em suas histórias, algumas coisas nunca vão mudar em Mortal Kombat, independente de quantos reboots existirem.
Caras, bocas e tripas
Se a trama é uma celebração do caos narrativo que a franquia se tornou, a jogabilidade vai na direção contrária para simplificar a porradaria. Os controles são simples e o jogo se livra de sistemas desnecessários, como estilos e variações de movimentos. É apenas escolher seu lutador favorito, memorizar os ataques e habilidades únicas, e cair na mão contra quem estiver por perto.
O novo game parece mais dinâmico e ágil que o antecessor, ao mesmo tempo que mais permissivo, também. Os personagens se movem com mais eficiência e há comandos para avançar ou recuar com rapidez mas, por padrão, o jogo oferece uma janela generosa para apertar botões de combos e poderes. Para quem não domina o timing de jogos de luta, é um auxílio muito bem vindo.
Ainda assim, a porradaria é altamente satisfatória. Os golpes têm peso, são visualmente absurdos e sangrentos, e é delicioso alternar entre sequências de socos e habilidades especiais em um único combo. Dentre os títulos mais recentes, se parece mais com Mortal Kombat X em termos de dinâmica e impacto, o que é uma coisa boa.
Por enquanto, o número de personagens disponíveis é sólido, com 24 lutadores logo de cara. É uma pena que quase nenhum deles seja inédito, com um elenco inteiramente feito a partir de nomes que já deram as caras na saga, mesmo que em títulos mais obscuros e esquecidos. O pacote de DLCs já anunciado trará apenas personagens estabelecidos e participações especiais, como o Capitão Pátria de The Boys, portanto é uma pena que o tal reboot tenha optado por não criar nenhum novo lutador.
Os personagens, porém, são ótimos. Há boa variação de estilos entre todos, visuais marcantes e personalidades bem definidas. Alternar entre os lutadores pede um pouco de adaptação, mas vale muito a pena, tanto pelos golpes únicos quanto pelo enorme carisma de todo o elenco.
Como se espera de um Mortal Kombat, o jogo não decepciona na sanguinolência. Cada edição testa os limites do aceitável com seus Fatalities progressivamente mais brutais. Aqui, graças à impressionante fidelidade visual, chegou ao ponto de desconforto com suas tripas derramadas, golpes em Raio-X e finalizações sádicas — ou seja, é excelente.
Para balancear, os visuais de ponta rendem também cenários de encher os olhos, repletos de cores, detalhes e iluminação intrigante, além das ótimas expressões faciais nos lutadores. Só fica um pouco mais desconfortável de ver olhos e bocas reagindo aos golpes mais violentos imagináveis, mas esse é justamente o apelo para todo bom degenerado.
Torres e tabuleiros
O Modo História te permite jogar com grande parte dos personagens, mas não é a única modalidade presente. É possível tirar contras com outros jogadores, seja online ou presencialmente, e também curtir dois modos single-player: as Torres e a Invasão.
O primeiro é o mais tradicional modo da saga, em que se enfrenta uma sequência de inimigos progressivamente mais desafiadores até chegar no chefão. Não há grandes mudanças aqui — o que não é um problema, visto que o modo nunca deixou de ser divertido ao longo de 30 anos.
Já Invasão é uma agradável adição que combina lutas e mecânicas de board game. Com histórias curtas, o modo te coloca para explorar um cenário que mais se parece um tabuleiro. A perspectiva vira isométrica e você avança de casa em casa, encontrando lutas variadas pelo caminho. Pode parecer bobo mas é viciante, já que os encontros são curtos (durando apenas um round) e podem trazer variações, como oponentes mais fortes, condições adversas ao jogador ou mini-games.
Explorar Invasão soa quase nostálgico, visto que a franquia costumava mandar muito bem nos minigames durante sua era 3D, que já teve modos de xadrez e até kart usando os lutadores. No fim das contas, a inclusão desse modo opcional acaba apenas reforçando: a Netherrealm criou uma obra para celebrar todas as divertidas loucuras que a franquia vivenciou ao longo das décadas.
Mortal Kombat 1 talvez não seja um bom reboot, mas é uma ótima homenagem a uma das franquias mais duradouras e impactantes dos games. Há muito a ser apreciado pelos fãs de longa data, mas a obra não se limita e estende um braço amigo para os novatos. Com uma das mais satisfatórias jogabilidades da saga, é uma ótima porta de entrada: venha pela porradaria e sanguinolência, fique pela mitologia completamente absurda e carismática.
Mortal Kombat 1 chega ao PlayStation 5, PC e Xbox Series X | S em 19 de setembro. Donos da Edição Premium já podem jogar a partir de hoje (14). A review foi feita com base na versão de Xbox Series X cedida pela desenvolvedora.