Pouco mais de um ano após Morte no Nilo (2022), Kenneth Branagh está de volta ao terno engomado, o bigode afiado e a deliciosa astúcia de Hercule Poirot. O ator estrela (e dirige), pela terceira vez, uma aventura do detetive das obras de Agatha Christie na telona com A Noite das Bruxas, e desta vez traz um bem-vindo tempero sobrenatural para a velha fórmula do “quem matou?”.
Baseada no livro de mesmo nome da mestra máxima do suspense, a trama traz Poirot curtindo a vida de aposentado na bela Veneza pós-Segunda Guerra. Mas, como todo castigo para detetive é pouco, a tranquilidade logo é interrompida pela intrépida escritora Ariadne Oliver (Tina Fey), que convence Poirot a embarcar num novo mistério.
Poirot e Oliver frequentam uma sessão espírita num antigo palazzo da bela cidade italiana, no qual espera-se que uma médium (Michelle Yeoh) ou seja desmascarada pelo detetive, ou traga conforto à mãe e cuidadores de uma jovem morta no edifício. Tudo, claro, em pleno Halloween. O que nem Poirot esperava é que a reunião causaria mais uma fatalidade no local, forçando o investigador a arregaçar as mangas e mais uma vez pentear o bigode em busca de um assassino.
Se a premissa parece mais apropriada a um longa de terror e suspense do que uma história de detetive, é porque, de fato, A Noite das Bruxas não economiza nas investidas no gênero. Da direção de Branagh, que usa e abusa de ângulos de câmera ora claustrofóbicos, ora destacando os grandes espaços vazios (mas nem por isso menos ameaçadores) do palazzo, até convenções comuns ao gênero, como os inevitáveis jump scares (os sustos que te fazem pular da cadeira e amaldiçoar a quinta geração do cineasta) e mais, o filme representa um bem-vindo exercício ao cineasta e também à fórmula da trilogia.
Por si só, esta embalagem pode transmitir a impressão de que, neste filme, a forma é mais importante do que o conteúdo, se não fosse por um detalhe redentor: o carisma inegável de Kenneth Branagh na pele do detetive, que permite ao espectador a boa vontade de embarcar numa nova aventura sem queimar muitos neurônios.
O astro encarna Poirot com o respeito e admiração merecidos, mas também uma dose saudável de cinismo. Se filmes como Entre Facas e Segredos (2019) trouxeram a ironia aos maiores clichês das tramas de detetives, elevando à enésima potência o tom absurdo de figuras como o Benoit Blanc de Daniel Craig, em A Noite das Bruxas, Branagh traz charme ao trilhar a linha tênue entre um investigador crível, competente e implacável, mas ao mesmo tempo levemente consciente de sua presença excêntrica.
Assim como em Assassinato no Expresso do Oriente (2017) e Morte no Nilo (2022), o ator e diretor é acompanhado por um time de estrelas, embora levemente distante dos medalhões que já passaram pela franquia, para o bem e para o mal.
Sempre competente, Tina Fey diverte como a cética Ariadne Oliver, braço direito de Poirot no novo mistério. Com a bola altíssima em Hollywood, Michelle Yeoh deixa a própria marca no filme, ainda que de forma tímida. Já o resto da galeria de coadjuvantes, incluindo Jamie Dornan (Cinquenta Tons de Cinza), Kelly Reilly (Yellowstone), Kyle Allen (American Horror Story) e mais, pouco se destacam além de serem instrumentos para quando o detetive precisa ou não de suspeitos ou pistas falsas.
Nesse sentido, A Noite das Bruxas peca por não trazer um mistério lá muito envolvente, ainda que embrulhado numa bem-vinda capa de terror. Não que se espere obras-primas da saga, já que tanto Assassinato… quanto Morte no Nilo eram pequenas historinhas descompromissadas seguradas por elencos competentes. Mas, aqui, ironicamente, a sensação é que a escala menor do longa em relação aos anteriores permitiu um holofote ainda maior para o próprio Poirot, cujo domínio de cena, ao menos, compensa os deslizes de trama.
Um olhar mais cético poderia até achar este filme uma certa viagem egocêntrica de Kenneth Branagh enquanto diretor e ator principal da trama. Mas não se pode contestar que Poirot é, não só o maior destaque de toda a narrativa (ele é o protagonista, ora bolas!), como o crime em questão torna-se mais interessante ao desafiar a fria racionalidade do investigador, do que como fato importante nas vidas dos demais personagens.
Ainda assim, A Noite das Bruxas recupera o fôlego da série após o insosso Morte no Nilo, diminuindo a escala e o escopo da investigação para um bom e velho casarão trancado com o investigador e os principais suspeitos.
Com orçamento 20 milhões de dólares menor que o antecessor (o que talvez explique a quantidade menor de astros de maior escalão), Bruxas não desperdiça tempo ao tirar o detetive e, por que não, o espectador da zona de conforto. Não se engane nem espere sequências grotescas a lá Jogos Mortais, mas o temperinho de horror traz pelo menos algum frescor à história e compensa as saídas fáceis do roteiro.
Se a tal fadiga de super-heróis ensinou alguma coisa, é que produções que fogem do “filme de boneco” e trazem tramas competentes, mesmo que não pretendam reinventar a roda, são mais do que bem-vindas. Não se engane, a trilogia Poirot ainda é produto de um grande estúdio e, querendo ou não, faz parte de uma franquia. Mas o perceptível carinho de Branagh com a obra faz toda a diferença.
No fim das contas, A Noite das Bruxas honra o imortal legado de Agatha Christie com um suspense divertido, que sabe das próprias ambições e limitações, mas nem por isso não se permite pequenos riscos. Onde estiver, a dama do mistério pode ficar aliviada, pois o bigode de Poirot segue em ótimas mãos.
A Noite das Bruxas chega está em cartaz nos cinemas brasileiros.