Retratos Fantasmas, novo filme de Kleber Mendonça Filho, é uma ode ao cinema como parte da cultura de rua, contada a partir da história de grandes salas de Recife. O longa documental examina o contraste entre a era de ouro desses lugares e o descaso com que foram tratados ao longo dos anos, sendo deixados para trás. E, por mais que seja um mergulho no passado, a produção é altamente relevante na era em que o valor da experiência cinematográfica é altamente questionado.

Continua após a publicidade..

Um filme que busca resgatar a importância do cinema de rua como espaço cultural é fundamental agora, alguns anos após grandes estúdios de Hollywood apostarem todas as suas fichas no streaming, mesmo que isso tenha gerado desconfiança nos realizadores, problemas na repartição de lucro e, claro, uma drástica mudança de hábitos no público.

Foi uma virada motivada pela urgência e pela crise sanitária da COVID-19, mas impulsiva ainda assim, como afirmou Kleber Mendonça Filho: “A indústria agora fez uma cagada que é jogar os filmes no streaming por causa da pandemia. É como comer o próprio braço em um momento de fome, mesmo que vá precisar da mão no futuro”, comparou o diretor em papo com o NerdBunker. “O resultado é esse, uma queda.

Basta assistir à Retratos Fantasmas para entender o enorme amor do cineasta pela ida ao cinema, mas o longa não se deixa levar pela nostalgia barata — e nem o diretor, que vê o valor na experiência ao mesmo tempo que critica seus vários defeitos, causados pelo descaso e falta de manutenção:

Continua após a publicidade..

A experiência cinematográfica permanece algo muito especial mas, para o meu gosto, passou por uma erosão. Essa erosão vem do fato que você pode ir num multiplex de 14 salas e saber que ninguém opera a sala, só uma pré-programação. Além disso, a sala já viu dias melhores e é muito pequena, e o projetor precisa trocar de lâmpada. Isso me desanima bastante.

Kleber Mendonça Filho tem o olhar de cineasta e décadas na indústria para saber identificar quando uma experiência está abaixo do ideal, mas o público sente a mesma coisa. Dentre os vários motivos para não voltar aos cinemas, muitos citam ter equipamentos melhores em casa, onde podem assistir a um filme sem ouvir conversas paralelas, tomar luz de celular na cara ou se preocupar em perder momentos importantes para ir ao banheiro.

Kleber Mendonça Filho em papo com o NerdBunker [Créditos: Ligia Lopes]

O diretor não está alheio à isso. Durante o papo, relembrou de quando Destacamento Blood, de Spike Lee, foi lançado direto no catálogo da Netflix, em junho de 2020 (vulgo auge da pandemia). “Me senti no futuro, mesmo preso em casa”, afirmou. “O mundo inteiro hoje tem esse filme. Eu tenho um equipamento muito bom aqui, em 4K e Dolby Atmos. Hoje à noite vamos fazer uma première do novo filme do Spike Lee, presos em casa. Eu gostei disso!

Parece impossível para um diretor de cinema ter uma posição dessas na discussão que permeia as redes sociais, mas Kleber Mendonça Filho deixou claro que seu ponto é muito simples, na verdade: o cinema e o streaming precisam coexistir, de alguma forma.

Continua após a publicidade..

Gosto de somar experiências, não gosto quando o mercado subtraí. É tipo a história do CD. Vinil era do caralho, aí chegou o CD e o vinil ficou ruim. O pessoal jogava fora para comprar CD. Lembro de voltar para casa e encontrar vários no pé de postes. Minha família nunca jogou fora um vinil, a gente só começou a comprar CD. Essa coisa da subtração é o que me pega no mercado. Eu odeio isso.

Economia criativa

Segundo Kleber Mendonça Filho, preservar o cinema também é dar vida à cidade [Créditos: Retratos Fantasmas/Divulgação]

Retratos Fantasmas é muito focado na experiência de ir ao cinema, muito além de só assistir a um filme. Os breves momentos de conexão frente à telona no escuro são uma experiência valiosa, mas que estão caindo em rápido esquecimento. O ponto do cineasta é que essas salas sejam valorizadas no agora, não apenas em retrospecto.

Segundo Kleber Mendonça Filho, a manutenção e valorização do cinema, especialmente as salas de rua, não é apenas por amor. Há importância cultural e econômica, como notou observando a cena de sua cidade natal: “Recife é um exemplo muito interessante porque, por uma série de questões que só podem ser explicadas pela cultura da cidade, conseguiram salvar o São Luiz e o Parque”, diz sobre dois cinemas de rua que são mostrados no longa.

O Parque tem 800 lugares, a pré-estreia do filme foi lá, é espetacular, e é de 1919. Ele deixou de ser uma sala comercial em 1959 e foi comprada pela prefeitura da cidade. Desde então, é teatro, música, dança e cinema, e agora foi restaurado para state of the art [tecnologia de ponta] há dois anos, então o equipamento de cinema dele está incrível. Aliás, foi uma das melhores projeções na carreira de Retratos Fantasmas.

O São Luiz foi comprado em 2008 pelo governo de Pernambuco e reabriu em 2010. De lá até o início da pandemia, teve uma política de construir uma nova imagem e um novo público, assim como o CineSESC faz em São Paulo, com festivais e uma programação de repertório, equipado com 4K e 35mm. Só para lhe dar um exemplo, filmes pernambucanos têm filas ao redor do quarteirão quando estreiam. Bacurau fez 33 mil espectadores lá. Os filmes de Gabriel Mascaro fazem 10 mil espectadores, e Aquarius fez 14 mil lá. É um caso muito particular de como uma sala dessas pode servir a sociedade ainda hoje.

Pelas falas do cineasta, fica claro que o cinema sobrevive a partir de três fatores: investimento em equipamento, preservação de prédios históricos e uma boa curadoria de títulos, que combine interesses comerciais com a criação de um repertório cultural. A partir disso, há chances para a experiência de ir ao cinema sobreviver frente à ameaça do streaming, que não consegue oferecer algo que consistentemente toque nos três pontos ao mesmo tempo.

Ainda assim, cinema é sobre pessoas. É sobre ver gente em carne-e-osso, experienciar uma obra e se sentir conectado com desconhecidos por algumas horas. É sobre sair de casa e vivenciar um pouco da sua cidade.

Continua após a publicidade..

O São Luiz vicia porque fideliza, se transforma em uma experiência”, afirmou o cineasta, explicando como a localização privilegiada da sala movimenta Recife como um todo. “Ele fica no centro da cidade, então quando tem mil pessoas dentro, e 700 na fila do lado de fora, o lugar ganha vida e oxigena o centro.

Retratos Fantasmas já está em cartaz nos cinemas brasileiros.