Em Retratos Fantasmas, Kleber Mendonça Filho (Bacurau, Aquarius) abre as portas do lar onde cresceu em Recife, Pernambuco. Localizado a 250 metros da praia, em um bairro calmo, o apartamento foi palco de bons momentos com sua família e cenário para vários de seus filmes.
O mergulho no passado não é nostalgia barata, e sim um lembrete do quão efêmero é o tempo. Essas memórias seguem vivas nos filmes, mas o que acontece quando o cinema em si corre risco de esquecimento?
O documentário é narrado pelo próprio Kleber Mendonça Filho, que vai do saudosismo pessoal a uma exploração da cultura de cinemas de rua do passado de Recife. Na região central da cidade, entre os anos 1950 e o começo dos anos 2000, diversas casas exibiam blockbusters de ação, comédias e filmes de arte para todo tipo de público. Hoje, esses locais, importantes para a formação cultural de tanta gente, são ruínas ou foram descaracterizados em lojas de franquia e igrejas.
Entender a história do cinema de rua, argumenta o cineasta, é observar um mundo em mudança, em nível de sociedade e no âmbito pessoal. Com um impressionante conjunto de imagens de acervo, a obra resgata pérolas do passado, como um projecionista que quase enlouqueceu ao exibir O Poderoso Chefão diariamente por quatro meses, quais filmes estavam em cartaz no fatídico dia do Golpe de 64, ou então o cachorro dos vizinhos de infância do diretor.
A única coisa em comum entre os três exemplos é que todos estão mortos e encobertos pelo tempo. Restam apenas seus fantasmas em tela. O diretor não encara esses vultos com espanto ou tristeza, mas sim com amor. E mostra como os filmes permitem que essas figuras vivam novamente, para um público que sequer saberia de sua existência em vida.
Desde o início, fica estabelecido que o que move Retratos Fantasmas é o amor, com um roteiro que concilia essa paixão pelo cinema e pelas pessoas com toques de denúncia, ironia e lamento, combinação digna de um bom romance de Kurt Vonnegut, complementada por uma narração sóbria. O texto chama a atenção para o que se perdeu pelo tempo, mas nunca se rende a um tom fatalista. O amor pelo cinema e pela experiência comunitária segue vivo, de um jeito ou de outro, ainda que seja constantemente testado pela falta de cuidados necessários.
O filme acerta ao demonstrar na prática como o cinema é muito mais complexo do que aparenta, sendo simultaneamente comércio e espaço de socialização, de aprendizado e de imaginação. “É complicado se apaixonar por um produto”, lamenta o diretor em certo ponto. Na mesma sala coexistem uma indústria bilionária e uma peça fundamental para a cultura. Mesmo sem oferecer respostas para o eterno cabo de guerra entre mercado e arte, deixa claro a noção de que tudo seria melhor se o público e os administradores pelo menos reconhecessem o valor desses espaços, enquanto ainda existem.
Retratos Fantasmas aparenta ser pessoal, mas se torna cada vez mais expansivo e ambicioso ao ritmo que destrincha o assunto. O que começa dentro de um apartamento logo passa a discutir como os centros de grandes cidades gradualmente caem em decadência, em um misto de beleza, sujeira, violência e autenticidade. O filme pode ser sobre Recife, porém seu argumento vale para São Paulo, Rio de Janeiro, Londres e muitas outras metrópoles. Em comparação com essa rápida mudança urbana, o cinema é só mais uma faceta de gestões que só sabem olhar para frente e de uma sociedade que cada vez mais busca isolamento e individualidade, disfarçados de conveniência.
No fim das contas, o longa acerta em expor o problema sem alarmismo, fazendo com que o espectador fique atento ao seu redor. É difícil não sair da sala de cinema sem perceber a própria cidade com outros olhos, se questionando sobre o que restou do passado e observando a desenfreada construção do futuro.
Após anos de descaso com a cultura, e na era em que o valor da experiência cinematográfica é constantemente atacado, Retratos Fantasmas vem como lembrete de que é preciso lutar pelas artes, visto que são extensões das pessoas que as criam, fazem curadoria, distribuem e consomem. Perder isso é perder um pouco de nós mesmos.
No trecho final, em que Kleber Mendonça Filho aparece na câmera e encena um papo com um motorista de aplicativo, um passeio de carro por Recife traz uma montagem de incontáveis farmácias, de todas as redes e tamanhos imagináveis. Esse é o cenário quando não se dá valor à própria história e cultura: muito remédio para o corpo físico, e nada para a alma ou para a mente.
Retratos Fantasmas chega aos cinemas brasileiros em 24 de agosto.