A mitologia grega é um assunto que conquista o interesse das pessoas há muito tempo, sendo explorada tanto em pesquisas acadêmicas quanto em produtos de entretenimento. Não é novidade que Zeus, Athena, Afrodite e vários outros, em suas respectivas histórias, apresentavam falhas bastante humanas, mas é sempre divertido especular como essas entidades se comportariam na sociedade contemporânea. E é esse contexto hipotético que Stray Gods: The Roleplaying Musical explora, desconstruindo o imaginário popular com uma brilhante singularidade.

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[Stray Gods possui possíveis gatilhos relacionados a violência, Transtorno de Estresse Pós-Traumático, morte e suicídio.]

Em Stray Gods: The Roleplaying Musical, o jogador assume o papel de Grace, uma jovem que herda, repentinamente, os poderes de uma das Musas do Olimpo. Após a transferência de alma, a deusa grega morre, devido aos ferimentos causados por uma tentativa de assassinato, e a ex-humana protagonista é envolvida em um julgamento que também pode a condená-la à morte.

Correndo contra o tempo, Grace ganha uma semana para descobrir quem é o responsável pelo falecimento da Musa e provar sua inocência. Nesse mundo até então escondido, ela conhece outros deuses gregos (conhecidos aqui como Idols) e criaturas — que podem se tornar aliados ou mais problemas.

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Grace é acusada de assassinar Calíope, última Musa do Olimpo e deusa de quem herdou os poderes (Humble Games/Summerfall Studios/Reprodução)

Para ir direto ao ponto, Stray Gods é um jogo que passa a sensação de assistir uma série interativa em alguma plataforma de streaming — e isso está longe de ser uma crítica negativa. O título é completamente focado em sua história, que entrega uma investigação sobrenatural intrincada e prende a atenção durante toda a gameplay. O universo do Olimpo é criativo, os acontecimentos são bem construídos e a narrativa se mantém instigante até o rolar dos créditos finais. O visual, por sua vez, foge da “paleta de cores” ligada à mitologia grega e esbanja originalidade, com misturas entre 3D e 2D, diversidade no design e um flerte notável com a estética pop art dos anos 1950.

Porém, a brincadeira colorida de detetive fica em segundo lugar entre os destaques desse game, já que os personagens, literal e metaforicamente, dominam o palco. Mitos gregos ganham roupagens modernas, com personalidades marcantes e humor sarcástico, que dão charme às entidades “imortais”. O jogador é envolvido pela lábia intimidadora, bondosa ou até galanteadora dos vários coadjuvantes mitológicos, que se tornam tanto amigos quanto suspeitos de assassinato em um mesmo diálogo.

Entre todas as figuras cativantes, o grande holofote fica sobre a protagonista Grace, que se molda nas decisões do player, dando espaço para quem está com o controle realmente se sentir…no controle. Pouco depois de começar o jogo, por exemplo, é preciso escolher um entre três caminhos-base para a narrativa (o charme, o confronto ou a esperteza), mas o sistema de escolhas bem aplicado permite que tons sejam misturados, dando a cada pessoa uma experiência individualizada.

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Existem certas limitações, como falas bloqueadas de acordo com o caminho escolhido, afinal os acontecimentos precisam seguir uma linha de raciocínio. A própria desenvolvedora não indica alterar decisões iniciais após muito tempo de gameplay (apesar de possível), pois salvamentos posteriores serão descartados, a fim de evitar desconexões narrativas e erros sequenciais.

Apesar disso, Stray Gods não obriga o jogador a tomar “decisões corretas”, e não há um final imutável. É fácil perceber que as possibilidades são múltiplas, instigando um instinto estratégico para alcançar objetivos, além de ativar a curiosidade para saber como será o desfecho da aventura.

O jogador escolherá caminhos-base mais de uma vez durante a gameplay, mas toda decisão deve ser tomada com cuidado (Humble Games/Summerfall Studios/Reprodução)

Um jogo para amantes de musicais

E Stray Gods: The Roleplaying Musical não dá destaque para o “Musical” em seu título à toa, já que entrega um verdadeiro espetáculo cantado. É de comum conhecimento que muitas pessoas não gostam de musicais ao estilo teatral, e definitivamente esse game não será o milagre que mudará opiniões quanto a isso. Porém, tal característica, aqui, não é apenas uma aleatoriedade. Existe uma justificativa para a presença das melodias, e o encaixe delas é bem pensado. As letras são alteradas de acordo com as escolhas do jogador e transformam conversas em trocas poéticas, envoltas por diferentes ritmos.

Ainda no mesmo tópico, um ponto paralelo que surpreende é a existência de vozes para os personagens durante todo o jogo — com qualidade digna de nota alta. Deuses(as) e criaturas falam e cantam em tons diversos, que combinam (quase sempre) com a personalidade do portador e deixam tudo mais real.

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As apresentações musicais do game são um show à parte, como comentado, mas não é raro notar momentos desafinados ou nuances que desagradam o ouvido. Esse detalhe, que poderia ser um grave incômodo, porém, se torna parcialmente envolvente. Decidimos olhar para ele não como uma falha, mas como uma forma inusitada de mostrar que a história não se passa em um estúdio de gravação profissional. As melodias convencem o “espectador” de que deveriam estar ali — apesar de nem todo mundo está preparado para uma performance ao vivo.

Com isso, o jogador não depende apenas de imaginação e do texto para dar vida à narrativa, o que possibilita uma imersão muito mais profunda na gameplay. E ainda há uma mecânica opcional de fazer escolhas em um rápido limite de tempo, usada apenas nas partes cantadas do jogo. Caso a seleção não seja feita nos segundos estipulados, uma opção será definida aleatoriamente, podendo divergir do que o player realmente gostaria de fazer na história. Dessa forma, uma adrenalina a mais é oferecida, já que tal recurso de jogabilidade demanda pensamento ágil do jogador que não quer deixar as decisões nas “mãos arbitrárias do computador/console”.

A grande infelicidade é que não há suporte textual ou dublagem em português brasileiro para Stray Gods. Mas, se o player consegue se virar bem com um jogo totalmente em inglês, a experiência se torna encantadoramente performática.

Existem cenas que podem ou não aparecer nas performances musicais – tudo depende das escolhas do jogador (Humble Games/Summerfall Studios/Reprodução)

Acessibilidade à la presente de grego

Por fim, Stray Gods oferece recursos voltados para acessibilidade que merecem uma avaliação separada. O jogo, por exemplo, acerta ao não depender só de cores para diferenciar o tom de cada fala, designando símbolos claros e distintos para cada caminho. As legendas também possuem duas opções de tamanho (média e grande), o que ajuda bastante os jogadores com dificuldades para compreender letras miúdas.

Porém, a grande questão está na ferramenta de descrição de cenas. Tal recurso pode ser ativado no menu do game e aparece em momentos-chave, permitindo que pessoas com deficiências visuais possam compreender a história da melhor maneira possível — mas precisa de melhorias. A narração foca, majoritariamente, em situações amplas do enredo, que se conectam bem com as vozes dos personagens. No entanto, peca ao não mencionar, por vezes, características físicas ou detalhes de ambientes, além de deixar alguns silêncios prolongados, que delatam falhas de timing.

Outro tropeço notável é que a ferramenta de descrição por voz não funciona nos menus do jogo, nas escolhas de falas e cenas musicais. Durante as canções, os caminhos pré-definidos estão sempre nas mesmas posições (esquerda-topo-direita), mas a pessoa com deficiência visual não tem como saber a frase que está escolhendo sem a ajuda de terceiros. E a situação fica mais complicada com o decorrer da história, já que, a cada diálogo, as posições podem ser alteradas. A cereja do bolo, por sua vez, é que a descrição de cenas está disponível apenas em inglês.

Visão geral do menu de configurações de Stray Gods, com aba dedicada aos avisos de gatilho, em detalhes (Humble Games/Summerfall Studios/Reprodução)

Depois de toda essa explicação, é preciso deixar claro que tais problemas de acessibilidade foram avisados previamente pela desenvolvedora de Stray Gods. A situação acima é o que chegará aos jogadores no lançamento, mas atualizações desses recursos foram mencionadas para o futuro.

O mapeamento de comandos para teclado estará disponível já na chegada ao mercado, mas a personalização para controles de console demorará mais algum tempo. Por aqui, passamos pela gameplay completa com um joystick, e a experiência não apresentou qualquer desconforto nas configurações padrão.

Stray Gods: The Roleplaying Musical é uma mistura inusitada de mitologia grega, filmes musicais e séries interativas que resulta em uma investigação brilhantemente singular. O enredo bem construído, junto de personagens performáticos, mergulha o jogador em um mundo colorido repleto de segredos — no qual cada escolha tem o real poder de mudar o “talvez felizes para sempre”.

O game do Summerfall Studios, definitivamente, não é indicado para players com aversão a jogos com cara de longa-metragem ou que simplesmente não gostam de musicais. Justamente por essas características, essa review não foca tanto em aspectos técnicos de gameplay, já que Stray Gods mantém a simplicidade mecânica para dar espaço à sua história de maneira diferenciada. Porém, aqueles que apreciam uma boa narrativa, com humor e consequências, devem dar uma chance ao título.

A recomendação do NerdBunker é jogar mais de uma vez, para, quem sabe, de acordo com as escolhas exploradas, conseguir desfechos diferentes ao longo da jornada.


Essa review foi feita com uma chave do jogo (para PC) cedida pela Humble Games.

Stray Gods: The Roleplaying Musical tem lançamento marcado para 10 de agosto no PC e consoles (PlayStation, Xbox e Nintendo Switch).

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