Roubando a lógica de uma velha parábola, é possível dizer que em True Detective: Terra Noturna há dois lobos. Um é o passado, cujos louros levaram a HBO a encomendar uma nova temporada de um de seus grandes sucessos. O outro é o presente, faminto para contar uma história inédita nos próprios termos. E é na dinâmica entre esses caninos, ora amigos e ora inimigos, que a série encontra seu melhor e pior.

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Criadora, diretora e roteirista da nova etapa, Issa López (Os Tigres Não Têm Medo) não escondeu que propôs Terra Noturna como um “mistério de assassinato no gelo” e, em resposta, recebeu a sugestão de transformar essa ideia em uma nova temporada de True Detective. Essa mudança de rota, feita logo nos estágios iniciais, trouxe os frutos mais variados.

O primeiro deles é emoldurar a história na estrutura desenhada pela primeira – e mais amada – temporada da série. Novamente, uma dupla de detetives difíceis une forças para desvendar um crime misterioso com contornos sobrenaturais e ligações com um caso do passado. Um conceito vago o bastante para que a investigação de Liz Danvers (Jodie Foster) e Evangeline Navarro (Kali Reis) sobre o desaparecimento de um grupo de cientistas chegue com frescor a um título inativo há cinco anos.

A história se passa em Ennis, uma cidadezinha do Alasca que passa meses sem ser banhada pela luz do sol. Naturalmente opressivo pela combinação entre a escuridão de uma noite eterna no gelo, o local serve como o palco perfeito para a investigação angustiante ao proporcionar obstáculos incomuns.

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Por um lado, o cenário torna Terra Noturna inconfundível em relação às outras temporadas, especialmente pela união entre a cinematografia de Florian Hoffmeister (Tár), que nunca deixa a escuridão se tornar tediosa ou incompreensível, e a direção de López, responsável pela atmosfera de tensão que conduz a trama. Por outro, tempera uma investigação que já não é fácil com questões muito próprias, como escassez de recursos, dificuldade de locomoção, e vários outros revezes.

Esse cenário hostil nos ajuda a conhecer as protagonistas. Como um bom suspense, a investigação revela também quem são essas personagens, presas em uma teia costurada entre dramas pessoais, erros do passado e a forma conflitante como veem o mundo. O problema é que a relação entre a dupla e aqueles que a cerca sofre com inconsistências.

De cara, fica claro que a dinâmica foge do habitual “tira bom e tira mau” e está mais para a linha de “tira mau em dose dupla”. Uma dinâmica arriscada que funciona, em grande parte, graças às atuações da veterana Jodie Foster (O Silêncio dos Inocentes) e da iniciante Kali Reis (Infiltrada – Golpe de Vingança), que trazem vida e carisma para as personagens, cujo desenvolvimento demora a pegar no tranco.

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Apesar de evitar certos clichês, o roteiro pena para desenvolver o lado sombrio das personagens. Por boa parte da temporada, o texto parece satisfeito em resumir suas figuras principais a frases de efeito enquanto espalha migalhas dos motivos para essas ações. As camadas só começam a aparecer na reta final da temporada e, não por acaso, muitos dos melhores e mais memoráveis momentos das duas acontecem quando o texto alcança a entrega das atrizes e dá a elas mais profundidade e emoções para trabalhar.

Felizmente, a dupla não está sozinha e, quando ela parece estar estagnada, o trem continua andando graças a uma forcinha dos personagens secundários. Sejam familiares delas, como Leah (Isabella LaBlanc) e Julia (Aka Niviâna), ou policiais com diferentes níveis de interesse no caso, como o veterano Hank Prior (John Hawkes) e seu filho, Peter (Finn Bennett), os personagens alimentam tanto o caso, quanto a conexão do público com as investigadoras ao ajudá-las a se desenvolver no lado profissional e fora dele.

Acontece que a dificuldade em desenvolver as protagonistas é apenas um dos diferentes deslizes que a série comete pelo caminho. A maior parte gira em torno da dificuldade em lidar com o escopo de uma história grandiosa que envolve um elenco vasto de personagens em um longo período de tempo – considerando que eventos passados impactam o presente. Dessa forma, parte das ideias não parece madura o suficiente ou faz conexões tão frágeis que, ocasionalmente, precisam de certos empurrões para funcionar.

Uma dessas derrapadas é a forma como a produção lida com o sobrenatural, pois a narrativa não se decide a respeito de haver ou não influências extramundanas na história. No papel, há uma clara intenção de deixar a questão em aberto, mas a execução pende para um lado e depois se esforça para despistar. O que se agrava quando utiliza a questão como muleta ou para trazer respostas sem as quais a história não avançaria.

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Essa questão traz até um outro problema: os momentos em que o lobo de True Detective avança no de Terra Noturna. A nova temporada busca por conexões e paralelos tão literais com a primeira, que a linha da homenagem é ultrapassada e se torna uma distração que não agrada aos fãs antigos e ainda distrai os novos ao trazer elementos que parecem aleatórios ao muitas vezes não servirem à narrativa principal. O lado bom, é que isso acontece de forma pontual, já que a nova história nunca perde de vista o que tem de próprio a contar.

A luz no fim da espiral

A dificuldade em se conectar com o passado de True Detective tem um efeito colateral curioso. Ao falhar em se escorar em nostalgia, Terra Noturna se faz digna justamente quando se afasta e conta a história em seus próprios termos. Afinal de contas, apesar de pegar a moldura emprestada, o quadro pintado por Issa López e sua equipe é bem diferente e conquista quando investe nisso.

Ao longo da temporada, a narrativa mantém a tensão crescente graças às curvas feitas pela investigação. A busca por respostas se torna gradualmente mais envolvente pela forma como explora essa cidadezinha no Alasca em que história, poder e interesses se misturam. Questões que vão surgindo e brincando com a percepção das detetives e, consequentemente, do próprio público.

Os desdobramentos, com suas surpresas e reviravoltas, alimentam a atmosfera de desolamento que toma conta e torna o caso quase pessoal para Danvers e Navarro. A forma como a dupla passa a encarar a investigação quase como questão de honra faz uma ponte entre a dupla e a audiência e se torna fundamental para que suas vitórias sejam celebradas, suas perdas lamentadas e, especialmente, para que o horror seja pleno.

Responsável por dirigir todos os episódios, Issa López põe a prova toda a bagagem que adquiriu ao assistir e comandar filmes de terror. Quando a investigação explode em momentos de horror ou os demônios internos das protagonistas são colocados em tela, a produção faz bonito ao recompensar toda a tensão criada e, de quebra, alimenta o próximo grande estouro. Uma estrutura que se mantém até um finale grandioso, surpreendente e emocionante.

Pode ser que a pressão para se tornar True Detective tenha atrapalhado Terra Noturna, mas também é verdade que, até aqui, a série nunca havia conseguido sair das sombras das próprias origens nas temporadas que a seguiram. Dessa forma, é justo acreditar que, no fim, um lobo alimentou o outro e alcateia sobreviveu à longa noite do Alasca.

Terra Noturna e as demais temporadas de True Detective estão disponíveis para streaming no HBO Max.