Um dos maiores desafios de uma cinebiografia é conseguir dialogar com dois perfis distintos de espectador. Por um lado, há a necessidade de agradar os admiradores do biografado. Nesse sentido, o rigor histórico que os fãs costumam esperar é muitas vezes posto de lado em nome da liberdade criativa — um cineasta, afinal, precisa adaptar os fatos para fins de síntese ou dramaticidade. E, sendo a fidelidade absoluta algo impraticável, a saída geralmente é focalizar os traços de personalidade mais emblemáticos e os acontecimentos mais significativos.
Em contrapartida, espera-se que um longa-metragem atraia também o público em geral, que não necessariamente conhece aquela figura retratada e que normalmente não teria interesse especial em suas adversidades e realizações. Assim, para ampliar seu alcance, a solução pode ser explorar a universalidade dos temas, recorrer aos episódios mais controversos e chamativos ou ainda dar destaque aos nomes envolvidos na produção.
Após um longo processo de desenvolvimento, que vinha se arrastando desde o início da década de 2000, Ferrari enfim chega às telonas brasileiras reunindo um pouco disso tudo. O roteiro, assinado pelo escocês Troy Kennedy Martin (que morreu em 2009), se concentra em 1957. Àquela altura, Enzo Ferrari (Adam Driver) já havia se estabelecido como ícone do automobilismo italiano e mundial, à frente da escuderia e da montadora que levam seu sobrenome. Ele se preparava, então, para a edição daquele ano da Mille Miglia (Mil Milhas), tradicional corrida realizada entre as cidades de Bréscia e Roma.
Um recorte temporal tão restrito impede a construção de um retrato mais elaborado do ex-piloto, embora ofereça outras possibilidades. Ao colocá-lo em uma época em que teve de lidar não apenas com o planejamento para a competição, mas também com problemas financeiros em suas empresas e uma crise conjugal, o filme ilustra algumas das complexidades do protagonista. Exemplos são a paixão obsessiva que nutria por suas máquinas e, ao mesmo tempo, a frieza pragmática com que tratava seus pilotos; e o amor declarado aos filhos (um deles, falecido) em contraste com a imaturidade emocional em relação a suas parceiras.
Esses elementos também carregam consigo os tais temas universais — como desejo, culpa, ambição —, que oferecem possibilidade de conexão mesmo à parcela da audiência sem qualquer familiaridade com o automobilismo. De quebra, trazem ao universo glamourizado de empresários milionários, nobres e atrizes de Hollywood um bem-vindo (ainda que quase cômico) tom folhetinesco, especialmente no que se refere às relações de Ferrari com a esposa, Laura (Penélope Cruz), e a amante, Lina (Shailene Woodley).
Todavia, aqui o roteiro acaba esbarrando no caráter unidimensional de suas personagens femininas, praticamente reduzidas a estereótipos como a esposa amargurada, dada a rompantes, e a amante compreensiva, o “verdadeiro amor”. O terceiro ato ainda tenta consertar a situação, mas a mudança que ocorre é súbita, sem desenvolvimento — e, portanto, ineficaz. Cabe a Penélope Cruz — capaz de comunicar mundos somente com o semblante em determinada cena — conferir alguma dignidade a Laura.
Por sinal, a equipe envolvida é um ponto forte. No elenco, Adam Driver também se destaca com uma performance comedida, em sintonia com o contorno cerebral e distante que o longa busca dar a seu protagonista. Para nós, brasileiros, chama a atenção ainda a participação de Gabriel Leone dando vida ao piloto espanhol Alfonso de Portago, que, embora não seja um papel bem aprofundado, tem grande relevância na trama.
A grande ressalva é o sotaque italiano que os atores de outras nacionalidades tentam dar a seus personagens — ele vai do pronunciado, no caso da espanhola Cruz, ao inexistente, no do norte-americano Patrick Dempsey (que interpreta outro piloto, Piero Taruffi), passando pelo flutuante (ora perceptível, ora não) do também norte-americano Driver.
Entre os realizadores, o nome mais importante é o de Michael Mann, que, embora conduza o filme com destreza, não consegue evitar os trechos em que a narrativa se põe em marcha lenta, avançando quase por inércia. Nas sequências de ação, o cineasta brilha ao imprimir o realismo cru e enérgico que caracteriza sua obra. Ele acompanha bem de perto os célebres carros vermelhos, com toda sua velocidade, trepidação e ruído, transmitindo a adrenalina e a vulnerabilidade de estar no interior daquelas carcaças de metal.
Ferrari se dirige a um público amplo. E há partes do discurso com potencial para engajar tanto com fãs da escuderia quanto com espectadores casuais. Mas, no geral, o longa reflete os traços da personalidade do biografado: passional e explosivo nas corridas, um tanto frio e protocolar em todo o resto.
Ferrari está em cartaz nos cinemas.