O lançamento de O Menino e a Garça no Japão foi marcado por mistério, já que a divulgação consistiu em um único pôster que mostrava o título e apenas parte de um dos personagens. Presidente do Studio Ghibli, Toshio Suzuki explicou que a ideia foi recriar a experiência que ele e outros veteranos envolvidos na produção tiveram na infância, ao receber poucas informações a respeito dos filmes em cartaz e “preencher as lacunas com imaginação”.
O ingrediente que permitiu tamanha ousadia foi o fato de que esse não é um projeto qualquer, mas sim o retorno de Hayao Miyazaki. Afinal de contas, um título capaz de trazer de volta da aposentadoria o gênio responsável por A Viagem de Chihiro (2001), e outros clássicos, se torna digno de nota instantaneamente. Porém, todo esse enigma caiu como uma luva para uma animação pouco interessada em explicar e completamente focada em fazer sentir.
O menino do título é Mahito, que vivencia logo cedo os horrores da Segunda Guerra Mundial. Após enfrentar eventos traumáticos e se mudar para um novo lar onde acaba cercado por estranhos, o garoto precisa lidar com luto, solidão e outras emoções complexas demais para a maturidade de alguém tão jovem.
É com essa carga que, logo no início, o filme traz alguns dos elementos mais característicos e adorados na obra de Miyazaki, como a chegada a um novo lar, localizado em uma paisagem rural tão bela quanto pacífica, através da perspectiva infantil. Porém, essa paz é acompanhada por uma amargura e uma inquietação que tornam Mahito incapaz de saborear o que parece ser a calmaria após a mais devastadora das tempestades. Afinal de contas, como você vive após seu mundo ser despedaçado?
Essa frieza com toques de revolta joga o menino em um mar de apatia e isolamento, que é chacoalhado com a chegada da tal garça. Misteriosa, a criatura leva o rapaz para uma jornada com uma promessa tão absurda, que o próprio garoto precisava ver para crer. Essa decisão dá início a uma viagem fantástica, que honra e subverte as expectativas a respeito do gênero em que se encontra.
Há séculos, ouvimos e contamos histórias sobre personagens que se aventuram por mundos extraordinários – não à toa que muitos projetos do próprio Hayao Miyazaki trazem paralelos com clássicos como Alice no País das Maravilhas ou O Mágico de Oz. Por essa bagagem, sabemos quase por instinto o que esperar desse tipo de enredo, e é desse conhecimento que O Menino e a Garça se alimenta para alçar voos por territórios inesperados.
Ao seguir a garça, Mahito adentra um universo grandioso que abriga diferentes mundos dentro de si. Um lugar que encanta ao ser explorado e desvendado ao longo de uma travessia cheia de aventuras e aprendizados, com direito a obstáculos, aliados e inimigos. São elementos que ganham vida em mais uma animação espetacular, que faz jus ao nome que o Studio Ghibli construiu ao longo dos anos.
Especialmente porque esse local obedece uma lógica de sonho, em que a abstração dita conceitos, dinâmicas e até as figuras que cruzam o caminho de Mahito. Um direcionamento que só funciona graças a um capricho extraordinário por parte da produção, que concretiza esses devaneios em uma animação tão rica visualmente, que convence como a forma mais próxima de traduzir um sonho para o audiovisual.
Esse esmero se torna ainda mais impressionante em um filme que se recusa a ditar, através de palavras, como essa jornada deve ser entendida. É como se o texto retirasse propositalmente qualquer expositividade, para que a imaginação e a dedução do espectador cuidem das conexões.
Capaz de dividir o público, essa abordagem traz um Miyazaki menos preocupado em amarrar tudo dentro de uma grande lição ou moral, fator importante nas histórias que compõem nossa bagagem de fantasia. O cineasta parece mais interessado em convidar o espectador para dentro de seus próprios sonhos e deixar cada um levar o que quiser.
Ao fim da rodagem, não chega a ser uma surpresa que o filme tenha elementos autobiográficos, especialmente pela abordagem em relação a Mahito e os personagens que o cercam. É como se o diretor usasse a arte para conectar diferentes pontos da própria história através da fantasia, que coloca o destino de todo um universo nas mãos de um garoto em processo de amadurecimento.
E acontece que mesmo possíveis ligações entre ficção e realidade são uma espécie de bônus que não oferecem respostas concretas, já que Hayao Miyazaki espalhou pedaços de si de formas menos óbvias. Discreto, o cineasta sempre compartilhou paixões, interesses e crenças através de suas obras. Dessa vez, não é diferente e condiz com a jornada desse jovem preso entre dois mundos e cujas experiências no fantástico mudam para sempre sua forma de agir no real.
Aliás, isso nos leva de volta a outra diferença fundamental entre o lançamento no Brasil e no Japão. Apesar de ter chegado aqui como O Menino e a Garça, o título original do filme é “Como Você Vive?” (em tradução livre). Ampla, essa pergunta dá o tom de um projeto que evita respostas fáceis e encontra sua razão de ser nos campos da imaginação e dos sentimentos – locais onde Miyazaki, e muitos de nós, precisam ir para conseguir viver.