Os momentos iniciais de O Mal Que Nos Habita são alguns dos melhores momentos do cinema de horror em 2023. Dois irmãos do interior da Argentina suspeitam que algo perverso se infestou no vilarejo e, ao investigarem um cadáver destroçado, logo encontram um sujeito deformado, de corpo inchado de tanta maldade e putrefação, prestes a parir algo terrível no mundo. Sem hesitar, a missão deles fica clara: conter os horrores antes que se espalhem.

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Em poucos minutos, o diretor Demián Rugna (Aterrorizados) cria um mundo cheio de dureza e superstições perigosas, com objetivos claros, visual cheio de textura e violência impactante. O problema é o que vem depois: uma luta para sustentar a aura inicial de desolação até o final do longa, custe o que custar — incluindo a paciência do espectador.

Conhecido também como When Evil Lurks, ou Cuando Acecha la Maldad no idioma original, o horror argentino se tornou um queridinho de 2023, dando as caras em incontáveis listas de melhores do ano, e frequentemente as liderando. É o tipo de filme a lá “Teste de Rorschach”, que precisa ser visto, pois afeta cada espectador de forma diferente. O choque da excelente violência com certeza será universal, mas muitos, como este que vos fala, vão contestar o andamento da trama e as várias decisões questionáveis tomadas para tentar despertar uma reação no público.

O Mal Que Nos Habita sabe como impactar visualmente [Créditos: Divulgação]

De início, fica estabelecida a grande ameaça e o principal conflito do longa: ao tentarem lidar com a criatura, os protagonistas acabam por trazer à tona seu principal medo, fazendo com a maldade se espalhe de forma infecciosa. O que complica a excelente premissa é uma certa obsessão em olhar para o mundo além da narrativa.

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Por um lado, há uma ambientação muito promissora ao se passar no interior. A escolha não só foge do esperado do cinema argentino, retratando uma realidade pouco conhecida fora do país, como também cria um conflito entre o campo e a cidade. O cenário rural é bruto, quase pós-apocalíptico, mas há meios de sobrevivência na sabedoria das pessoas. E, segundo os personagens, as metrópoles são decadentes, infestadas pela maldade e podridão, ao ponto de que o surgimento do mal no interior choca por estar deslocado, e não exatamente por existir.

Os personagens parecem ter experiência com a maldade, como se fosse algo conhecido. Conversas revelam um mundo em que a perversão atingiu cidades, ao ponto de que a religião sequer foi capaz de ajudar, criando toda uma mudança no sistema de fé. Os personagens discutem as sete regras para sobrevivência — a luz elétrica atrai o mal, os possuídos não podem ser combatidos com armas de fogo, e aí por diante —, mas basta se depararem com alguma ameaça que logo tudo é esquecido.

Decisões burras dos personagens são usadas para conectar momentos impactantes [Créditos: O Mal Que Nos Habita/Divulgação]

O Mal Que Nos Habita frequentemente apela para decisões burras, como forma de conveniência para manter o horror. A ideia é de que a maldade está sempre por perto, prestes a atacar, e que fugir apenas adia o inevitável. Sem saber como argumentar isso, o filme faz com os personagens se contradigam a todo momento, indo contra a enorme burocracia e experiência prévia que são estabelecidas.

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As decisões são tiradas do ar mesmo. Alguém falou para não usar luz elétrica? Então um farol de carro é aceso. É proibido usar armas de fogo? Um tiro é dado no primeiro sinal de suspeita. Não se deve confiar nos possuídos? Os protagonistas logo se entregam, sem muita resistência.

O filme até poderia estar tentando demonstrar um ângulo mais humano frente à tragédia, retratando como o heroísmo fica de lado diante de um desespero real, urgente e avassalador. A forma que entrega isso, porém, é apenas frustrante e contraditória.

Apesar dos deslizes, O Mal Que Nos Habita acerta nos momentos chocantes [Créditos: Divulgação]

É uma pena, porque a direção de Rugna é muito habilidosa. O cineasta estabelece suspense sufocante, e brilha nos momentos mais gráficos ao retratar situações infernais com controle absoluto da tensão. Uma cena em que uma garota é desfigurada por um cachorro enquanto os pais discutem, ou que uma mãe “belisca” e come os miolos do filho como se fossem pipoca são exatamente o tipo de coisa que não saem fácil da cabeça.

O problema de O Mal Que Nos Habita é não saber amarrar momentos poderosos e ambientação interessante com o sentimento que quer evocar e com a mensagem que quer passar. Individualmente, todos os elementos são atraentes, ainda mais na mão de um diretor talentoso como Demián Rugna, mas acabam colados de qualquer jeito, sem coesão.

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O filme mira no desespero e no choque, e por mais que consiga ocasionalmente atingir esse objetivo, acaba por acertar realmente na frustração e no cansaço.

O Mal Que Nos Habita já está em cartaz nos cinemas brasileiros.