Imagine a seguinte história: o cotidiano de uma família é interrompido pela súbita e misteriosa morte do pai, cujo corpo foi encontrado pelo filho ao voltar de um passeio com o cachorro. As circunstâncias enigmáticas em torno de tal queda fatal dão início a uma investigação, que tem como suspeita a esposa do falecido e mãe do garoto. Essa tragédia é o ponto central de Anatomia de Uma Queda, um quebra-cabeças ancorado em um drama cortante e reflexivo.

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O filme começa literalmente momentos antes da desgraça acontecer e se desenrola em torno da dúvida se estamos diante de um assassinato ou suicídio. A busca por respostas dá início a um longo processo que vai de uma apuração minuciosa até um julgamento que se divide entre a investigação criminal e os motivos que levariam a uma hipótese ou outra.

É somente sob essa lente que o roteiro de Justine Triet e Arthur Harari permite que o público conheça os personagens. Afinal de contas, suas identidades, qualidades, defeitos e, em especial, a relação com o morto, servem como combustível para o andamento de uma trama que se mantém interessante e surpreendente pela forma como manipula a percepção do espectador.

Nesse ponto, é como se o espectador se tornasse parte do júri que vai decidir o destino de Sandra Voyter (Sandra Hüller), a suspeita do possível assassinato. Um rótulo simplista que é abandonado conforme o texto se aprofunda nessa personagem, que é também viúva do falecido, mãe do recém-órfão e, acima de tudo, uma escritora com toda uma história antes da tragédia com a qual precisa lidar.

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Estabelecidas as várias faces da protagonista, o filme se debruça em dissecar a vida dela. Para se defender da acusação, Sandra tem sua história revirada de cima a baixo e precisa responder por eventos públicos e particulares, em especial questões mantidas entre ela e o falecido marido. Assim, o processo judicial se transforma no estudo dessa mulher, cuja imagem é modificada a cada nova descoberta ou evidência.

A atriz Sandra Hüller responde a essa enorme responsabilidade com uma interpretação potente ao fazer jus às diferentes camadas de sua personagem. Afinal de contas, ela precisa lidar com todas essas facetas, que borbulham conforme cada nova informação é revelada e escrutinada diante da justiça, de estranhos e do filho. Seja nos momentos singelos ou em discursos grandiosos, a intérprete cria um retrato complexo e marcante que carrega a produção.

Uma tarefa nada fácil, considerando o longo e difícil processo pelo qual a personagem passa. Além de criar uma forte carga de tensão que ajuda a narrativa a caminhar, cada revelação e reviravolta obriga Sandra a abordar verdades inconvenientes que deixam de pertencer à sua particularidade e passam a servir como evidência. Um caminho que serve tanto para a construção da personagem quanto para fazer pensar a respeito dos limites a respeito das particularidades da vida alheia. Um debate pertinente na era das redes sociais, que até chega a inspirar algumas das reflexões mais rasas, o que, felizmente, não acontece aqui.

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Junto a Sandra Hüller, o elenco tem como destaque o pequeno Milo Machado Graner, que brilha no papel de Daniel, o filho do casal. Com pouca idade, o garoto mata no peito a responsabilidade de interpretar esse jovem cuja importância vai muito além de uma simples testemunha dos eventos. A forma como ele age e inspira ações de terceiros tornam o drama mais comovente e o mistério mais aflitivo.

E é na forma como equilibra a busca por respostas e o drama enfrentado por essa família que Anatomia de Uma Queda encontra sua razão de ser. Esses dois lados ganham vida na direção de Justine Triet, que tem uma abordagem singela e quase documental na forma de retratar tanto o julgamento quanto a vida particular da família após a tragédia. Uma condução que garante a imersão ao valorizar cada elemento do filme sem chamar a atenção para si, focando em transmitir ao público as angústias, temores e frustrações de questões tão complexas.

Apesar de ser certeiro na forma como valoriza e costura seus elementos, de forma que cada um deles importe no panorama final, o longa não cai na armadilha de oferecer respostas concretas e definitivas pois, como diria Umberto Eco, “ai de mim, a vida não é fácil assim”. As pessoas e as relações que estas constroem são profundas demais para serem definidas por um punhado de adjetivos ou eventos isolados, que podem ser interpretados de formas variadas dependendo da perspectiva.

Essas complexidades se tornam ponto-chave do filme, que as utiliza tanto para criar reviravoltas quanto para colocar o público para pensar. Dessa forma, uma pergunta que parece tão simples quanto “morreu ou foi assassinado?” é respondida através de um longo processo marcado por poréns, como memórias que falham ou eventos que se escondem na busca por proteção, chegando ao ponto de que mesmo os personagens que mais anseiam pela verdade acabam por ocultá-la quando é conveniente – ou necessário.

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Tudo isso torna Anatomia de Uma Queda uma experiência imersiva, memorável e comovente, especialmente pela forma como essa história é contada. São várias as vezes em que a produção mexe com a percepção do espectador e depois volta para explicar como o fez de forma elegante. Um processo que valoriza a participação do público sem subestimar sua inteligência, um toque que faz toda a diferença em um projeto dessa natureza.

Anatomia de Uma Queda está em cartaz nos cinemas do Brasil.