Na imagem que estampa o pôster de Vidas Passadas, seus protagonistas estão sentados diante de um carrossel. A escolha não poderia ter sido mais certeira: trata-se de uma sequência emblemática do longa-metragem, não somente pela importância que tem no enredo, mas também pelo subtexto que carrega.

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O brinquedo evoca a infância e o irresistível apelo da nostalgia, algo reforçado pelo fato de que aquele carrossel em questão, o famoso Jane’s Carousel, no bairro do Brooklyn, em Nova Iorque, é cercado por paredes de vidro, como uma relíquia encaixotada para exibição. Ao mesmo tempo, ele faz com que seus passageiros embarquem em uma viagem em círculos, simulando avanço sem de fato sair do lugar. Cada uma dessas ideias simboliza o estado de espírito dos personagens principais.

A cena também se destaca pela decisão da diretora coreana-canadense Celine Song de retratá-los em um enquadramento mais próximo — em consonância com o diálogo franco que eles têm naquele instante — depois de tê-los filmado à distância ou através de uma janela, colocando o espectador como voyeur do encontro. Por sinal, ela usa recurso similar já na ótima sequência de abertura, que, nas palavras da cineasta, “convida a audiência para o filme e também a provoca a se envolver”. E tal envolvimento vem com facilidade.

Na trama, depois de se mudar ainda criança para a América do Norte (inicialmente para o Canadá, com os pais; mais tarde, sozinha, para os Estados Unidos), Nora Moon (Greta Lee, magnífica) passa a construir sua vida como escritora. Até que, em um lance do acaso, acaba se reconectando com Hae Sung (Teo Yoo), seu amigo de infância e primeiro amor. O reencontro, porém, chega fora de compasso, uma vez que ela agora é casada com um norte-americano, o também escritor Arthur (John Magaro).

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Sem recorrer a reviravoltas ou excesso de conflitos e melodrama, o longa conquista apostando em elementos mais básicos, muitas vezes menosprezados por outros exemplares do gênero. A começar pela construção dos personagens. Hae Sung talvez seja o que mais se aproxima de um mocinho convencional: doce, idealista e um tanto melancólico. Ele, todavia, ganha outras camadas ao combinar paixão e apatia, resiliência e resignação.

Cabe a Nora driblar os clichês românticos, se distanciando de estereótipos como “garota sonhadora que precisa se encontrar” ou “mulher forte e independente em um dilema”. Aqui, a protagonista sabe muito bem quem é e o que quer, e toma todas as decisões que precisa, sem titubear. Nem por isso, é sobre-humana; pelo contrário: colocada em uma situação em que dois aspectos de sua vida de repente se sobrepõem, ela não resiste à ideia de contemplar a versão que nunca existiu.

Sua humanidade reside nessas nuances e contradições: o modo cínico com que primeiro fala de “in-yun” (a palavra coreana para “providência”, “destino”) e o sentimentalismo com que depois retoma o conceito; a sinceridade ao expor toda sua situação ao marido e, mais tarde, a casualidade com que omite dele certos detalhes de uma conversa com o amigo de infância.

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Em sintonia com a falta de apego aos lugares-comuns que o filme abraça, Arthur também subverte expectativas — no caso, as que se referem à terceira ponta de um triângulo amoroso. Ele não é um obstáculo ao destino, um adversário do mocinho, um candidato ao amor da mocinha; é simplesmente um marido apaixonado e dedicado, que sente ciúme e insegurança, mas conhece a esposa o bastante para compreender e aceitar o que Hae Sung representa.

Não há vilões em Vidas Passadas, apenas pessoais reais, e é isso que torna o filme tão poderoso (Divulgação)

Tudo isso, obviamente, é mérito não somente das atuações, mas do roteiro, escrito pela própria Song. A autora explora muito bem os diálogos — são memoráveis o de Nora com o marido em seu quarto e o dela com o amigo no bar —, tanto quanto os silêncios, como aqueles que surgem entre os protagonistas quando crianças e, quase no final, já adultos.

Também é primoroso o modo como a narrativa é construída para além do texto. São muitas as cenas que narram mais do que as palavras conseguiriam: o gesto quase automático de servir um copo de água, denotando gentileza cotidiana; o plano que mostra apenas a janela de um dormitório, com o som da porta de um carro batendo lá fora e fazendo a cortina balançar, sugerindo o frescor de um brisa, algo novo que está chegando — pura poesia visual.

Seria injusto não mencionar outros trunfos técnicos do longa. O discreto, porém belíssimo trabalho do diretor de fotografia, o antiguano Shabier Kirchner, valoriza todas as decisões da cineasta — por exemplo, quando transforma as ruas e paisagens de Seul e Nova Iorque em personagens à parte. A trilha sonora, assinada por Christopher Bear e Daniel Rossen, da banda indie norte-americana Grizzly Bear, alterna emoção e ambientação em suas composições originais. Por sua vez, o acréscimo de canções pop enriquece o significado de determinadas sequências, casos de “You Know More Than I Know”, do galês John Cale, e “Hey, That’s No Way to Say Goodbye”, do bardo canadense Leonard Cohen.

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De certo modo, a imagem do carrossel consegue traduzir a porção fatalista do filme: a vida, afinal, é como uma viagem em círculos na qual não é possível voltar, apenas olhar para trás. Mas a essência de Vidas Passadas não se resume a isso; talvez quem tenha chegado mais perto de defini-la seja a mãe de Nora, interpretada por Ji Hye Yoon: “se você deixa algo para trás, você também ganha algo”.

Vidas Passadas está em cartaz nos cinemas brasileiros.