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Pobres Criaturas é uma excêntrica e radical exploração do autodescobrimento | Crítica

Ainda que seja um dos melhores filmes de terror clássicos e uma das melhores continuações já feitas, o título de A Noiva de Frankenstein (1935) é enganoso. A personagem titular — imortalizada por Elsa Lanchester por seu visual memorável – dá as caras somente nos momentos finais da produção e sequer é a figura central da trama.

Sua participação serve apenas como extensão de uma reflexão do Monstro de Frankenstein (Boris Karloff) sobre a maldição da existência. A Noiva, outra criação monstruosa cujo propósito é fazer companhia ao Monstro, mal consegue dar um passo antes da criatura decidir abrir mão da vida e levá-la com ele, declarando: “Nós pertencemos aos mortos.

Pobres Criaturas, por sua vez, imagina uma realidade em que a tal criação tem uma nova chance de viver, crescer e encontrar a si própria como uma mulher, sem as amarras do criador. Baseado no livro homônimo de Alasdair Gray, o novo filme de Yorgos Lanthimos (O Lagosta, A Favorita) homenageia e reinterpreta Frankenstein para entender: o que é uma vida que vale a pena ser vivida?

Sociedade Civilizada

Do surto ao autoconhecimento, Emma Stone se encontra em Bella Baxter [Créditos: Pobres Criaturas/Divulgação]

Ambientado na Era Vitoriana, o filme mostra que o Monstro da vez tem nome e rosto: Bella Baxter, vivida por Emma Stone, que é criação macabra do doutor Godwin Baxter (Willem Dafoe) — cientista que, por sua vez, também é remendado de experimentos intrusivos pelo pai. Com corpo de uma mulher adulta, mas consciência de uma criança, a personagem literalmente amadurece durante o filme, ao ritmo em que descobre o mundo ao redor.

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Ainda que Pobres Criaturas ressalte o quão vital é essa jornada, nunca chega a idealizá-la, reforçando que há muitos horrores no processo. Há muita diversão, claro, mas também angústia inerente em abordar o mundo através de tentativa-e-erro. Bella viaja, dança, come pastéis de nata em Portugal, faz amizades, mas, simultaneamente vê a injustiça, a escassez e é manipulada e explorada por gente mal intencionada ou mal resolvida.

Mesmo assim, o jeito que a protagonista lentamente conquista a própria vida é bem bonito, corajoso e autêntico. Sem pudor, Bella atende aos desejos da carne e da mente curiosa, e não tem medo de questionar normas e etiquetas. “A sociedade civilizada vai te matar”, afirma um amigo para a personagem, que logo absorve a fala como mantra.

Bella Baxter só se torna fascinante na mão de Emma Stone. Ingênua e cheia de trejeitos bizarros, poderia facilmente ser uma personagem muito irritante na mão de alguém menos talentosa. Felizmente, não é o caso de Stone, que se encontra na curiosidade genuína e na ousadia da protagonista. Nos momentos iniciais, quando Bella ainda é, efetivamente, uma criança, a performance é um pouco caricata demais, mas a atriz cresce ao lado da personagem no decorrer da trama e se torna verdadeiramente magnética.

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Mark Ruffalo complementa jornada da protagonista ao interpretar homem patético e controlador [Créditos: Pobres Criaturas/Divulgação]

Esse efeito hipnótico, inclusive, acontece até no mundo do filme, já que Bella é cercada por homens simplesmente obcecados por ela. O elenco masculino segue a lógica inversa: os atores brilham justamente por serem irritantes, como forma de ilustrar diversos ângulos de ameaça à recém-encontrada liberdade da personagem.

Como o monstruoso criador Godwin Baxter, Willem Dafoe é sóbrio, macabro e controlador de forma paternal, transmitindo os traumas de sua criação à Bella. Já Max McCandles (Ramy Youssef), assistente de Godwin que se apaixona pela jovem criatura, tenta impedir a jornada de autodescobrimento sob a desculpa do amor. Mas é o Duncan Wedderburn de Mark Ruffalo que se mostra o principal antagonista.

Veterano de comédias românticas em um passado pré-Hulk, Ruffalo deixa seu charme para trás e abraça uma persona mesquinha, ciumenta e pequena, que persegue Bella quase como um espírito obsessor ao perceber que não é capaz de controlá-la. Alívio cômico pelo desprezo, o personagem enfatiza muito bem como a protagonista trilha o caminho certo. Não que Ruffalo fique a altura da atuação poderosa de Emma Stone, mas é sim um complemento necessário.

Absurdismo barroco

Belíssimo e artificial, mundo de Pobres Criaturas transmite aura de fantasia [Créditos: Divulgação]

Não bastasse as atuações de peso, um senso de humor macabro, e uma jornada muito intrigante, a excelente direção de Yorgos Lanthimos eleva o que já é ótimo ao patamar da excelência. A obra é uma ode à bizarrice que nos torna únicos, à curiosidade que nos move, e às estranhezas que nos tiram do piloto automático de uma vida mundana e sem graça, e o cineasta consegue facilmente traduzir tudo isso em termos visuais.

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Esteticamente, nada aqui é convencional, mas memorável e impactante. Diálogos comuns são distorcidos por lentes olho-de-peixe, zooms dramáticos e rápidos movimentos de câmera. Ao ritmo em que Bella se descobre, o visual evolui do cotidiano rodado em belíssimo preto-e-branco para um exuberante mundo colorido marcado por cenários propositalmente teatrais. Um contraste entre a beleza e a artificialidade da tal Sociedade Civilizada do mundo exterior. Todo figurino, especialmente os usados pela protagonista, são lindos de morrer. É uma sobrecarga dos sentidos de excelência quase barroca, para se assistir babando em todo detalhe.

Fotografia cheia de truques, cenários e figurinos exuberantes criam um filme lindo de se ver [Créditos: Pobres Criaturas/Divulgação]

É curioso como Lanthimos concilia seu estilo próprio com homenagens à histórias clássicas de horror. O longa combina a atmosfera pesada dos clássicos de monstro da Universal dos anos 1930, com toda a sensualidade e banho de cores das reinterpretações da Hammer Films da década de 1960, ao mesmo tempo que traz visuais modernos e rebuscados, flertando e desconstruindo noções contemporâneas de preciosismo estético. É como uma versão deturpada de um mundo de comercial de perfume, em que a protagonista gradualmente descobre o quão plástico e falso tudo é, buscando a beleza nos pequenos vislumbres de autenticidade que encontra pelo caminho.

Não é surpreendente que Pobres Criaturas seja um dos filmes mais falados da temporada de premiações, tendo acumulado impressionantes 11 indicações ao Oscar 2024. A nova parceria entre Yorgos Lanthimos e Emma Stone é ousada em todos aspectos, do visual à temática.

Na era em que certo puritanismo varre os debates e redes sociais, é refrescante ver um filme que compreende que o caminho para a autoafirmação é repleto de altos, baixos e pessoas de todas as índoles. O importante é se deixar levar pela curiosidade e pela autocompaixão. No fim das contas, há muito a se aprender com Bella Baxter.

Pobres Criaturas chega aos cinemas brasileiros em 1º de fevereiro. O filme disputa 11 indicações ao Oscar, incluindo de Melhor Filme. A cerimônia de entrega dos prêmios acontece em 10 de março.

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