O impacto cultural da estreia de Godzilla nos cinemas, em 1954, foi instantâneo e sua longevidade fala por si. Com mais de 30 filmes – incluindo versões em Hollywood – em quase 70 anos, o personagem se tornou um ícone que se recusa a morrer e atravessa gerações deixando rastros de caos, destruição e admiração. Um legado que se agiganta ainda mais com Godzilla Minus One, uma elegante, assustadora e emocionante aula de cinema kaiju.

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Título dado às produções focadas em monstros gigantes, o gênero kaiju evoluiu de maneira quase contraditória. Por um lado, há um nicho apaixonado o bastante para mantê-lo relevante. Por outro, há um público descrente das possibilidades dessas histórias ao erroneamente reduzir seu charme à destruição pela destruição. Para a alegria do primeiro grupo, o novo lançamento de Godzilla não só é capaz de colocar um sorriso no rosto de quem já ama o gênero, como também se torna uma porta de entrada perfeita para convencer os céticos de que kaiju não é bagunça – ou melhor: vai além da bagunça.

Mesmo se tratando do 30º filme live-action do monstro, Godzilla Minus One conta uma história inédita e independente. Situada na década de 1940, a trama acompanha o Japão após a Segunda Guerra Mundial, conflito do qual saiu com o peso da derrota e da devastação causada pela explosão de duas bombas atômicas. No momento em que o país começa a se recuperar, o temido Rei dos Monstros surge e leva uma nação que estava no zero ao nível menos um.

O grande acerto da produção é o cuidado no desenvolvimento do monstro e dos humanos, que se retroalimentam e fornecem o necessário para capturar o espectador conforme a história se move adiante. A humanidade é representada por Kōichi Shikishima (Ryunosuke Kamiki), um piloto kamikaze – unidade que realizava ataques suicidas – que precisa lidar com as implicações de ter voltado para casa sem cumprir sua missão.

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Se o pós-Guerra foi difícil para o país em diferentes níveis, o filme foca na perspectiva de Shikishima para abordar culpa, honra e dever, sentimentos que se tornam combustíveis para o arco do protagonista e aqueles ao seu redor. Acompanhar essas pessoas reconstruindo suas vidas em meio às adversidades deixadas pelo conflito torna esse núcleo cativante por si só. Esse drama comovente, embalado em uma rica reconstituição de época, fisga o público e parece até tomar o rumo de um enredo de superação. Infelizmente para nossos heróis, é aí que o Godzilla surge novamente.

Uma das mais constantes críticas a longas de monstros gigantes – especialmente os produzidos em Hollywood – está na dificuldade em incorporar os seres humanos, que constantemente se tornam a parte mais chata do projeto. Ao tratar esse lado com a devida atenção, Minus One faz um conceito chamativo, como ter o Rei dos Monstros castigando um país recomeçando após o pior momento de sua história, ter um impacto ainda maior. Afinal, nos preocupamos de verdade com o que vai acontecer com os personagens em tela

Veterano da franquia, Takashi Yamazaki assumiu as funções de diretor, roteirista e supervisor de efeitos visuais de Minus One, uma decisão que garantiu um controle criativo invejável. O cineasta não perdeu a oportunidade e, no quesito ação, colocou em tela alguns dos ataques mais marcantes de Godzilla, que deixa uma assinatura própria ao mesmo tempo em que honra a herança deixada pelos filmes anteriores.

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Cada investida do monstro é filmada da maneira mais clara possível, valorizando tanto a escala do monstro em comparação às pessoas, quanto a capacidade destrutiva da criatura. Seja em terra firme ou no mar, a direção tem pleno domínio sobre a forma como demonstra seus atributos beligerantes e defensivos sem perder tempo com exposições baratas.

A narrativa mostra na prática por que o Godzilla é um inimigo tão difícil de ser batido, em cenas tão espetaculares quanto urgentes, capazes de empolgar pela adrenalina e até assombrar com horror. Uma abordagem que absorve a ligação estabelecida com os humanos e a devolve na forma de uma ameaça tão colossal que exige que nossos heróis evoluam enquanto correm contra o tempo na busca por uma resposta definitiva.

A forma como essas tramas caminham juntas e se retroalimentam culminam em um clímax memorável que eleva todos os acertos a um novo patamar, que coloca em jogo cada nível da produção. A urgência daquele país em busca da sobrevivência, misturada à luta final do protagonista contra seus demônios, são costuradas em um combate final com um oponente inigualável no auge de suas capacidades de devastação.

Chega a ser curioso que, no fim das contas, Godzilla Minus One se saia tão bem sem fugir muito da fórmula estabelecida quase 70 anos atrás, pelo primeiro filme da saga. Com um espetáculo de alto nível, capacidade de emocionar e uma pitada de comentário social, ele é a nova prova que é possível ensinar novos truques a um velho kaiju.

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