É bom esclarecer algo: quando falamos da “fadiga de super-heróis”, a discussão costuma girar em torno das produções de alto orçamento da Marvel Studios e da DC Comics. Não é que o gênero se esgotou, é só que o padrão dos espectadores subiu. As obras que buscam agradar precisam ser mais criativas ou terem abordagens originais, como é o caso de The Boys, Invencível, os filmes de Aranhaverso, e da animação brasileira Sociedade da Virtude.
Criada em 2017, a websérie alçou voo no Youtube, ganhou versões em outros idiomas e também conquistou a atenção do [adult swim], passando a integrar a programação do canal, que retornou ao Brasil este ano. Considerando que é a primeira animação latinoamericana da grade do canal, não dá para dizer que Sociedade da Virtude está sofrendo com a tal fadiga. Muito pelo contrário, a produção parece ter um futuro cada vez mais promissor.
Durante a CCXP23, o NerdBunker teve a oportunidade de conversar com três das principais figuras por trás da série animada: os criadores Ian SBF e Thobias Daneluz, e o ator Guilherme Briggs. Em poucos minutos de papo ficou evidente que ainda há muita energia e ânimo para continuar criando histórias que celebram e zoam o gênero de heróis em medidas iguais.
“Acho que super-heróis são tema mundial”, falou Ian SBF sobre o apelo duradouro dessas histórias. “Todo mundo se identifica, entende e consegue se relacionar com isso, até com as brincadeiras e com as críticas sociais que fazemos usando esse universo de plano de fundo.”
Essa universalidade é o que definiu toda a era de ouro das HQs, que usavam seres super-poderosos para lidar com todo tipo de problema social e questão do mundo real. Afinal, o próprio Stan Lee classificou o objetivo dos quadrinhos da Marvel como “enxergar o mundo além da sua janela”. Em essência, e com uma boa dose de galhofa, a abordagem da Sociedade da Virtude não é tão diferente, como explica Ian SBF:
“Parece que a gente brinca com o mundo dos super-heróis, mas é só um background. Na verdade, brincamos com o mundo em que vivemos, são situações que encontramos na vida. Brincamos com o ser humano — só que alguns que, por acaso, gostam de usar collant e pular de prédios.”
Thobias Daneluz, o ilustrador por trás de todas as artes da websérie e seus vários derivados, complementou a fala do colega dizendo que o apelo de Sociedade da Virtude é manifestar muitas noções e pensamentos curiosos que qualquer um pode ter ao assistir obras de heróis:
“Essa é a grande força de Sociedade da Virtude. O assunto que traz as pessoas é rir de algo cotidiano envolvendo heróis super-poderosos, deuses e super-grupos. São perguntas que tenho certeza que a maioria das pessoas fizeram vendo filmes da Marvel. A gente estava falando disso hoje mesmo: quando o Homem-Aranha deixa dois caras pendurados, você não sabe quanto tempo eles ficam lá.”
Um Novo Mundo através da janela
Seguir a mesma lógica criativa das HQs clássicas acabou dando resultados parecidos com os das grandes editoras de quadrinhos, que notoriamente “parodiavam” umas às outras até eventualmente encontrarem a voz própria e única de seus personagens.
“Nossas paródias são tão paródias quanto metade do universo Marvel e da DC”, comparou Ian SBF. “E essas paródias geram coisas originais, como a Pantera Ruiva, que é a nossa maior personagem e é 100% original. Com isso, brincando com o universo dos outros, a gente criou o nosso universo original. Todos os outros surgiram dessa mesma forma.”
O ato de usar a paródia como ponto de partida para algo original desafiou a equipe a se aperfeiçoar para não cair na imitação barata, como explicou Thobias Daneluz:
“Sinto que eu evoluí muito em Sociedade da Virtude porque eu tinha que criar. Tudo bem que a maioria é paródia, mas são paródias que descambaram para o original em alguns momentos. Criou perna própria. Temos grupos de heróis e personagens que criamos pensando em outros [já existentes], mas o negócio foi meio que virando algo forte.”
É bom dizer que o ato de parodiar, por mais que frequentemente seja na zoação, vem de um lugar de muito amor pelos quadrinhos. Na verdade, o amor pelo meio é o que move todos os envolvidos em Sociedade da Virtude. Ao longo dos seis anos desde que a websérie surgiu, o maior aprendizado da equipe foi como canalizar esse amor em criações originais e empolgantes. Logo no início, eles perceberam que havia outro fator para impulsionar o projeto: a admiração mútua entre a equipe.
“Eu sou apaixonado por animação, desenho e ilustração”, afirmou o ator e dublador Guilherme Briggs, sobre como acabou se envolvendo na série. “Poder trabalhar em algo brasileiro que envolve uma coisa tão próxima dos quadrinhos, que respira quadrinhos, para mim é muito atraente. Eu gosto muito do Ian, e ainda não conhecia o Thobias. Quando eu conheci o trabalho dele, fiquei apaixonado pelo traço. O roteiro do Ian e o traço do Thobias é um casamento absurdo de perfeito, é muito atraente para mim.”
Durante o papo, nenhum dos três escondeu ser apaixonado pelo trabalho do outro. Thobias Daneluz, uma cria de locadora e filmes dublados (e, para fins de transparência, ex-colega de trabalho de quem vos fala), não demorou para disparar: “Eu falo que meu maior sonho foi realizado porque o Ian me fez trabalhar com o Briggs. É meu herói de infância, assim como de todo mundo que têm a minha idade.”
Sociedade da Virtude tem produção bastante horizontal, em que todos podem contribuir com ideias para aperfeiçoar a arte, roteiros e dublagem. Com o tempo, essa participação mútua passou a influenciar diretamente o desenvolvimento, como explicou Ian SBF:
“Tudo foi aprendizado, até como trabalhar com a dublagem, como trazer o Guilherme Briggs para isso e como ele podia ajudar criativamente. O personagem foi crescendo na voz do Briggs. Quando eu escrevia, já pensava ‘Nossa, acho que essa piada vai fazer sentido, o Briggs vai falar tal coisa’.”
Ainda que hoje seja apaixonado pelo projeto, Guilherme Briggs não escondeu certo ‘pé atrás’ com o estilo de motion comic, em que imagens estáticas passam noção de movimento ao invés de ser, de fato, uma animação quadro-a-quadro.
“Eu tinha medo, no início, de que ficasse parecendo com os desenhos desanimados da Marvel”, falou o dublador, aos risos. “Eu curto, mas fiquei com medo do público reclamar que era muito parado. Falei ‘tomara que dê certo’, e deu certo! […] O meu lado nerd é muito bem alimentado pelo Sociedade da Virtude.”
Com tanta sinergia e vontade de expandir o universo original, Sociedade da Virtude não dá sinais de que pretende desacelerar. Inclusive, a parceria com o [adult swim] rendeu a transmissão da série animada na TV tradicional.
“Foi uma surpresa incrível e maravilhosa”, falou Ian SBF sobre como o canal norte-americano abordou a equipe em um momento delicado. “Estávamos na UTI porque teve a pandemia, que foi um baque para todo mundo, e o [adult swim] veio em um momento muito propício, porque o canal estava voltando ao Brasil depois de tanto tempo. Procurando conteúdo brasileiro interessante, eles nos acharam e vieram conversar com a gente.”
O resultado dessa conversa é simplesmente a encomenda de material inédito, permitindo que o trio possa continuar explorando o apelo e a galhofa dos heróis, com novos episódios feitos sob medida para quem nunca vai abrir mão de uma boa história de heróis. “Culminou no lugar mais perfeito do mundo: nerd fazendo conteúdo para nerd, podendo anunciar na feira nerd que nós teremos uma nova temporada em 2024, no [adult swim]”, celebrou Ian SBF.
Sociedade da Virtude é transmitida todos os dias no [adult swim], às 22h25 de segunda a sexta, e às 22h50 aos sábados e domingos.