Diz a vasta sabedoria popular que “toda publicidade é boa”. Aos 85 anos e com clássicos como Alien (1979), Blade Runner (1982) e Gladiador (2000) nas costas, Ridley Scott certamente já tem um pé de meia e a moral necessária para não dar a mínima sobre o que pensam ou deixam de pensar sobre seus filmes. Ainda assim, o cineasta defende seu novo longa, Napoleão, com unhas e dentes, o que torna-se estranho quando, mesmo com o cacife do diretor, o drama com Joaquin Phoenix se perde na mesma ambição que trouxe a ruína do imperador francês.

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Em primeiro lugar, é bom deixar claro que Napoleão não funciona como uma cinebiografia. Ao menos não nos moldes tradicionais. Se as declarações de Scott na imprensa, incluindo mandar historiadores “arrumarem o que fazer”, não forem indicativas o suficiente, as incoerências do longa para com a trajetória real de Bonaparte farão qualquer estudioso estrebuchar na cadeira do cinema.

A trama passeia por diferentes décadas da vida de Napoleão Bonaparte (Phoenix), na turbulenta França após o fim da monarquia. Ridley Scott costura os pontos principais do curso militar do imperador de forma burocrática, ainda que empregue suas grandiosas cenas de batalha. A ascensão e queda de Bonaparte nos altos escalões do governo francês é intercalada por importantes conflitos como o cerco de Toulon, as invasões à fria Rússia e a investida contra os ingleses em Waterloo.

Brutais, as sequências de ação se beneficiam do olhar particular do cineasta, apostando em grandes tomadas abertas, sem economizar na violência e na tensão. Os fãs do Ridley Scott de Gladiador (2000) e de Cruzada (2005) certamente se deleitarão com o espetáculo de sangue, mas o problema vem na forma “Wikipédica” que a narrativa é apresentada, já que Napoleão salta tão bruscamente entre cenas que faz o espectador imaginar o quão conturbada era a sala de edição do longa.

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Isso leva ao segundo caminho possível para a trama. Se não biográfico, poderia se argumentar que Napoleão é um épico de guerra/ficção histórica (se é que isso existe). Só que, mesmo visto dessa forma, o filme dilui as competentes cenas de ação numa montagem confusa, que apresenta os anos da vida do imperador como uma espécie de coletânea de melhores momentos do biografado, mas sem o devido contexto.

As maquinações políticas por trás das mudanças socioculturais da França do século XVIII servem apenas de pano de fundo para o desfile de Joaquin Phoenix como Bonaparte. Se o espectador espera conhecer a fundo a importância de Napoleão e o que o fez um gênio da guerra, ainda que como uma figura controversa, terá de fazer um esforcinho para lembrar das aulas de História.

Joaquin Phoenix e Vanessa Kirby em Napoleão. Crédito: Sony/Apple/Divulgação

Parceiro antigo de Ridley Scott, Phoenix imprime em seu Napoleão um equilíbrio entre o carisma e o ranço. O astro de Coringa (2019) concilia a frieza do Bonaparte calculista e a patética pequenez (literal, visto que o filme a todo momento brinca com a baixa estatura do protagonista) do homem que tem tudo, mas ainda se perde em mimadas inseguranças. Incluindo o tórrido e disfuncional romance com a imperatriz Josefina (Vanessa Kirby).

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Na dinâmica da dupla, Napoleão vira uma “dramédia romântica”. Phoenix e Kirby exalam tensão sexual nas cenas juntos, levando à tela a relação de paixão, desejo e codependência de Bonaparte e Josefina. Mais um mérito de Phoenix é entregar o contraste entre o sisudo Napoleão público, com o baixinho enfezado caído de amores por sua esposa. Tal deixa é aproveitada por Kirby, que se firma na figura de mulher fatal, mas que ainda exibe uma tênue fragilidade.

Ainda que o casal seja, de longe, o maior trunfo de Ridley Scott no longa, Napoleão não se salva de uma narrativa desconjuntada. Como explicar, por exemplo, a sensação de que perdemos um monte de informações, mesmo com duas horas e meia de projeção?

A questão revela mais uma faceta problemática do longa, porque Napoleão, grosso modo, também é um enorme teaser. Coprodução da Columbia e Apple TV, o filme chega aos cinemas já com uma versão estendida confirmada para streaming. Os 157 minutos do longa “original” darão lugar a mais de quatro horas de material para a telinha.

A decisão talvez até explique a picotagem narrativa feita por Ridley Scott, mas torna a experiência ainda menos satisfatória, se considerarmos a inversão de valores de privilegiar o lançamento em streaming à experiência da telona.

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A essa altura, dificilmente se espera uma nova obra-prima de Ridley Scott, mas se nem o cineasta consegue explicar, em tela, o que de fato quis fazer, resta ao querido leitor escolher qual das tantas narrativas se apegar. Assim como a figura que o inspira, Napoleão sofre da ambição de querer o muito, sem se preocupar em como acomodar tantos elementos num mesmo prato.

Napoleão está em cartaz nos cinemas brasileiros e, em breve, chega ao Apple TV+. Siga de olho no NerdBunker para mais novidades. Aproveite e conheça todas as nossas redes sociais, entre em nosso grupo do Telegram e mais – acesse e confira.