Há uma década, a previsão de que celulares seriam o futuro dos jogos arrancou risos dos gamers mais hardcore. Hoje em dia, é uma realidade que muitos deles sequer perceberam. O mobile conquista legiões de jogadores casuais, conta com seus hits exclusivos como Free Fire e ainda tem a maioria dos jogos do momento, como Fortnite e Genshin Impact. Nesse cenário mais consolidado, os estúdios grandes agora tentam atrair o público hardcore para a plataforma com games de alto nível.
É o caso da Ubisoft. A desenvolvedora mantém forte presença nos consoles e PC, mas gradualmente está explorando o mundo mobile com esforços admiráveis. Recentemente, o estúdio anunciou projetos como Rainbow Six Mobile, The Division Resurgence e Assassin’s Creed Jade, que prometem tramas originais, mecânicas e polimento dignos das versões das demais plataformas.
Durante a Brasil Game Show 2023, vários desenvolvedores da Ubisoft vieram ao Brasil e o NerdBunker conversou com alguns para entender: o celular enfim se tornou uma plataforma atrativa para os gamers hardcore?
“Acredito que ainda vai se tornar”, esclareceu Justin Swan, diretor criativo de Rainbow Six Mobile. Segundo ele, as obras feitas para mobile ainda estão desenvolvendo a própria linguagem, mas lentamente estão chamando a atenção do público de outras plataformas.
O motivo se dá por títulos grandes chegando aos celulares, com adaptações que levam em conta a realidade dos dispositivos, como a tela de toque e a otimização necessária para rodar no máximo de aparelhos.
“Com Rainbow Six Mobile, os jogadores hardcore de Siege abraçaram porque os Operadores são os mesmos e os mapas são muito parecidos, então eles conseguem praticar o jogo mesmo quando não estão em casa.
Não sei se consigo dizer que o mercado mobile de shooters evoluiu desde a nossa última conversa, honestamente. O que estamos desenvolvendo é a próxima evolução em termos de qualidade, no sentido de possibilidades de jogo e fluidez da jogabilidade. Espero que, quando o jogo enfim for lançado, as pessoas entendam como uma evolução [dos jogos mobile].”
Desafio mecânico
Rainbow Six Mobile é um dos argumentos mais fortes para entender o mobile como uma plataforma tão séria quanto qualquer outra. A conversão de Rainbow Six Siege traz toda a jogabilidade tensa e arriscada do original, mesmo que o celular não seja o lugar ideal para isso.
Além dos controles de toque, é preciso levar em conta o fato de que se trata de um público muito mais amplo e casual, e também que os aparelhos em si são multiuso, combinando games, apps de streaming de filmes e séries, mensagens de amigos, trabalho e redes sociais (e, ocasionalmente, ligações), todos disputando a atenção do jogador.
Na verdade, essa é uma preocupação dos desenvolvedores que precisam levar em conta o fato de que o dispositivo faz mil outras funções além de rodar jogos. “É uma pergunta gigantesca que se traduz em cinco anos de trabalho para tentar respondê-la”, ressaltou Justin Swan. “Vou tentar resumir. Foi preciso melhorar nosso ‘onboarding’ porque há mais jogadores casuais no mobile do que nas outras plataformas, então foi preciso introduzi-los ao mundo de Siege de forma mais lenta e gentil.”
O desenvolvedor, então, detalhou o que isso implica na prática, como diversas funções pensadas para tornar o ritmo de jogo mais dinâmico e acessível, perfeito para ser aproveitado em pequenas doses:
“Na jogabilidade, adicionamos muitas funções que chamamos de ‘assistências’, como pulo automático, assistência de mira e até automatizar o ato de atirar. Claro, é melhor se você puder atirar manualmente, mas a função está lá para quem não consegue controlar a mira e atirar ao mesmo tempo. Há ainda toneladas de opções de customização para os controles. Você deveria ver nossa lista de opções, é insana.
Outro elemento grande foi a duração das partidas. No mobile, é preciso que as coisas durem por volta de 10 minutos porque você joga no ônibus ou sentado na privada, mas se você comparar com Siege, uma partida competitiva por lá pode durar uma hora. Isso não é aceitável no mobile.
Encontramos formas de adequar ao reduzir o tempo de preparação e acelerar a velocidade de algumas animações, para que os jogadores consigam se arrumar de forma mais eficiente, e usar o formato de ‘Melhor de Três’ nas partidas casuais e ‘Melhor de Cinco’ nas competitivas. Alguns modos até usam round único para garantir partidas bem mais rápidas. Você abre o jogo e escolhe de acordo com quantos minutos têm disponível.”
Swan afirma que isso inspirou até modos de jogo em que o jogador renasce rapidamente após morrer, para garantir que a atenção não seja roubada nos minutos entre um round e outro: “Se você morre no começo do round, você tem tempo livre para abrir o Twitter, Facebook ou até Netflix. Isso não é bom para nós”, explicou. “Queremos que você fique no jogo, portanto se você renasce, você tem algo para fazer. Precisamos manter o perigo de morrer mas garantir algo interessante para se fazer caso morra.”
Variedade desafiadora
Outra grande questão que atormenta os desenvolvedores se dá pela variedade colossal de dispositivos. É mais fácil atingir um padrão de qualidade satisfatório quando todo PlayStation 5 e Xbox Series S | X têm as mesmas especificações. Nos celulares, em especial no lado do Android, os aparelhos são drasticamente diferentes entre si e há centenas de novos sendo lançados anualmente.
Portanto, toda conversa com desenvolvedores mobile é marcada por uma palavra-chave: otimização. Isso significa garantir que o jogo seja graficamente bonito e tenha desempenho sólido, mas que seja flexível o bastante para rodar na maior quantidade de dispositivos possível.
Fabrício Mombelli, brasileiro que atua como diretor de live operations de The Division Resurgence, discutiu a tarefa de traduzir o shooter em terceira pessoa aos celulares. No caso do game, otimização significa “traduzir o jogo para uma interface nova, adaptar a experiência, menus, navegação e a parte técnica para o mobile”, segundo o desenvolvedor.
“Um jogo do tamanho e complexidade de The Division pede muita otimização para ser realizado. Foi um grande foco do projeto, garantir que o jogo esteja disponível para jogadores não só do high end mas também compatibilidade aos celulares mais antigos”, explicou Mombelli.
A mesma máxima é válida para Rainbow Six Mobile. O game foi lançado em beta aberto com boa recepção, mas só está disponível em alguns países. Novamente, otimização é o que impediu um lançamento global, já que a maioria de jogadores de locais como o Brasil não tem dispositivos de alto nível de desempenho, como explicou Justin Swan:
“Pelos primeiros seis meses deste ano, nosso foco foi otimizar para aparelhos de 4GB de RAM, que são a maioria em países como o Brasil. Conseguimos isso, o que nos dá confiança de que temos ampla compatibilidade para o lançamento final. Não faria sentido lançar no Brasil se só tivesse suporte para aparelhos de 6GB, então tivemos que otimizar.”
Grandes jogos, apesar de tudo
Os vários desafios não parecem desencorajar os estúdios de explorarem o espaço mobile. A iniciativa vai muito além da Ubisoft. Recentemente, a Capcom anunciou que vai levar Resident Evil Village e o remake de Resident Evil 4 para o iOS. O mesmo vale para Death Stranding, game de Hideo Kojima que será portado para os dispositivos da Apple em breve.
Jogos de todos os tipos e tamanhos passam a cogitar o mobile como opção. Indies como Horizon Chase 2 chegam aos celulares antes das demais plataformas, e títulos como Call of Duty, Dead by Daylight e PUBG se consolidaram nos celulares com comunidade e atualizações próprias, sem brigar pelo espaço e atenção das versões de PC e console.
Enquanto gamers hardcore ignoram o potencial do mobile, empresas brigam para conquistar essa área como se fosse uma corrida espacial virtual. A Microsoft justificou a compra bilionária da Activision Blizzard como uma forma de crescer nos dispositivos móveis, já que a companhia é dona da King, a criadora de Candy Crush. Já a Netflix lentamente adentra o mundo dos jogos através dos apps de celular, oferecendo uma seleção robusta e intrigante de títulos para os assinantes do streaming de filmes e séries.
Isso sem nem ao menos tocar no assunto de usar o mobile para streaming, como já permite a Nvidia e o Xbox Game Pass. Ou então o fato de que celulares já têm compatibilidade com controles, se transformando praticamente em consoles portáteis de baixo custo para jogar títulos nativamente, via nuvem ou emuladores.
“Em vários casos, especialmente na América Latina, muita gente não consegue pagar um Nintendo Switch, mas todo mundo tem um celular”, falou Nicolas Gonzalez, representante da SNK, em entrevista ao NerdBunker, sobre a versão mobile do game de luta Samurai Shodown. “É um port ótimo, mas por conta da falta de tempo, não conseguimos lançar com suporte aos controles. Essa é, de longe, a função mais pedida pelo público nas reviews […] É definitivamente uma forma de acessar o jogo.”
Ainda há muito a ser melhorado e aprimorado na experiência mobile, mas a investida da Ubisoft e de outros grandes estúdios é um forte sinal de que a plataforma já não precisa mais batalhar para demonstrar poder.
O potencial foi entendido pelos estúdios e pela grande massa de jogadores casuais. Em breve, com a chegada de mais e mais blockbusters, os gamers hardcore vão perceber isso também.