Ponderando sobre a passagem do tempo e sua influência na escolha de projetos futuros, Martin Scorsese observou ao jornalista e crítico de cinema Richard Schickel: “Devo entrar em território completamente novo – tentar fazer um espetáculo do mundo antigo, por exemplo? Devo tentar fazer um filme para crianças? […] Não sei se tenho esse tempo para experimentar. Nos últimos dez anos pus isso tudo de lado, de certa forma. Estou lidando com histórias que são semelhantes às que já lidei antes. Acho que estou encontrando novas maneiras de contar essas histórias, encontrando coisas novas para dizer com elas”.

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A reflexão é uma das inúmeras presentes no livro Conversas com Scorsese, escrito por Schickel e publicado em 2011. Naquele ano, ironicamente, o cineasta nova-iorquino acabou de fato lançando um filme para crianças, A Invenção de Hugo Cabret. A partir dali, no entanto, ele se concentrou em revisitar e reinterpretar alguns de seus velhos temas: o excesso (O Lobo de Wall Street, 2013), a fé (Silêncio, 2016) e a máfia (O Irlandês, 2019).

Assassinos da Lua das Flores, mais recente trabalho do diretor, ilustra o refinamento dessa sua capacidade de explorar caminhos diferentes em terrenos que ele mesmo já havia mapeado. Baseado no livro-reportagem homônimo do jornalista David Grann, o longa-metragem aborda uma série de crimes raciais ocorrida no início da década de 1920 no estado do Oklahoma (EUA) e que ficou conhecida como Reino do Terror. Após a descoberta de jazidas de petróleo no território dos Osage – um dos povos originários da América do Norte –, dezenas de membros da nação indígena passaram a ser assassinados por brancos, desejosos de se apropriar de suas terras e, assim, enriquecer com os recursos minerais.

A exemplo do material original, o filme usa como fio condutor a história de Mollie (Lily Gladstone), uma Osage que se casa com o forasteiro branco Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), recém-chegado à região a convite de seu tio, Bill Hale (Robert De Niro), fazendeiro local com influência política e bom trânsito junto aos indígenas. Um a um, os familiares de Mollie vão morrendo em circunstâncias suspeitas, o que, em conjunto com outras mortes, cria um clima de terror na comunidade.

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ATENÇÃO: a partir daqui, o texto contém spoilers leves do filme, baseado em fatos reais.

O roteiro, assinado por Scorsese em parceria com Eric Roth, se apoia em dois elementos narrativos que caracterizam outros épicos de crime do cineasta. O primeiro é a estrutura: os três atos podem ser definidos como a introdução do novato em um universo desconhecido, a escalada inconsequente da violência e o acerto de contas; o segundo elemento é o foco, centrado no ponto de vista dos criminosos. É aqui, no entanto, que as semelhanças terminam: enquanto os clássicos Os Bons Companheiros (1990) e Cassino (1995) romantizam os bandidos, retratando-os como anti-heróis, o novo filme apropriadamente direciona a empatia do público para as vítimas.

Uma das maneiras pelas quais Assassinos da Lua das Flores atinge esse objetivo é por meio de Mollie. Embora não seja a protagonista, ela é a figura central, em torno da qual a trama se desenrola. Felizmente, é também uma personagem feminina multidimensional e bem construída, algo escasso na filmografia do cineasta.

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Mollie caminha entre dois mundos: abraça os hábitos adquiridos, como a língua e a religião dos colonizadores, ao mesmo tempo em que se mantém fiel às próprias raízes. Ela desfruta do conforto proporcionado pelo dinheiro do petróleo, como motoristas, uma casa ampla e “uísque do bom”, mas se sente compelida a ficar em silêncio diante do poder da tempestade. Por fim, é perspicaz o bastante para, logo de cara, enxergar Ernest como o oportunista que é – um “coiote”, como ela o chama em uma de suas primeiras interações – e, mesmo assim, se permite depositar nele seu amor e confiança. É um papel que ganha ainda mais peso com o carisma e a interpretação sensível de Lily Gladstone, merecedora dos elogios que vem recebendo.

Embora com menos tempo de tela, outros personagens contribuem para gerar essa identificação com os Osage – e o longa consegue desenvolvê-los o suficiente para que o espectador se importe com seus destinos. São os casos de Anne (Cara Jade Myers), uma das irmãs de Mollie, vista como “rebelde” por ser sexualmente livre; sua mãe, Lizzie (a veterana Tantoo Cardinal), desgostosa com o fato de suas filhas terem escolhido se casar com forasteiros; e o afável Henry (William Belleau), que enfrenta problemas de saúde mental.

O filme ainda explora mais um recurso bastante eficiente nesse sentido: a alusão a outro massacre histórico ocorrido no Oklahoma na mesma época. Em 1921, na cidade de Tulsa, uma multidão de supremacistas brancos atacou o bairro de Greenwood, apelidado de “Wall Street negra” por ser um bem-sucedido polo de desenvolvimento econômico da população afro-americana. No decorrer de dois dias, os terroristas depredaram lares e comércios, mataram dezenas e deixaram centenas de feridos. Ao traçar um paralelo entre o Massacre de Tulsa e o Reino do Terror, o longa sublinha a motivação racial por trás de ambos – e a necessidade de reconhecimento, responsabilização e reparação.

Tudo isso somado reforça a percepção de que, em Assassinos da Lua das Flores, a narrativa focada no ponto de vista dos criminosos não tem intenção alguma de estabelecer anti-heróis. Pelo contrário: a atitude demagógica do velho Bill Hale, que se apresenta como “amigo” e “patrono” dos Osage, não tarda a ser desmascarada aos olhos da audiência.

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Já o racismo de Ernest fica relativamente velado, até explodir em um impactante monólogo, carregado também de machismo e manipulação. Nem mesmo seu amor por Mollie, retratado como sincero, é o bastante para redimi-lo. E é justamente essa contradição que rende alguns dos melhores momentos do longa. Em especial, a deslumbrante tomada que mostra o personagem em um quarto escuro, com a luz alaranjada de labaredas lá fora brilhando pelas janelas – uma síntese visual do conflito do protagonista. Aqui, cabem aplausos para a performance de Leonardo DiCaprio e o brilhante trabalho do diretor de fotografia Rodrigo Prieto.

Chama a atenção também a preocupação do roteiro em tentar neutralizar uma armadilha: cair na fórmula do “salvador branco”, tão comum em enredos hollywoodianos envolvendo outras etnias. Isso porque os assassinatos foram desvendados com a chegada dos agentes do Bureau of Investigation – que só mais tarde ganharia o prefixo Federal e passaria a ser conhecido pela sigla FBI.

Acontece que esse departamento do governo norte-americano foi envolvido no caso em decorrência do fato de os Osage terem enviado uma comitiva a Washington para pressionar o presidente a tomar providências. Justificadamente, o filme dá destaque a essa mobilização e coloca a iniciativa nas mãos dos próprios indígenas, driblando assim o clichê indesejável. Também ganha alguma proeminência a presença de um investigador nativo-americano no time do Bureau, liderado pelo agente Tom White (Jesse Plemons) – no longa, ele se chama John Wren (Tatanka Means) e atua como infiltrado, principalmente em meio à comunidade.

A reta final das três horas e meia de duração da obra ainda guarda algumas inovações narrativas. Há uma cena que, com seu enquadramento e atmosfera, sinaliza um daqueles finais secos porém dramaticamente poderosos que o cineasta costuma proporcionar – e, de fato, ela encerra a trama de modo inequívoco. Dessa vez, todavia, Scorsese decide prosseguir com duas sequências adicionais.

A primeira é uma elaborada alternativa aos costumeiros letreiros que contam o que acontece com os personagens após o fim da história. E, à primeira vista, esse é seu único objetivo. Entretanto, ela acaba funcionando também como um comentário ao hábito da indústria de se apropriar de histórias étnicas e promover sua espetacularização com distanciamento e impessoalidade – e uma participação especial surpresa torna esse comentário ainda mais contundente.

A segunda sequência dialoga com o prólogo do filme, formando uma moldura: enquanto a abertura do longa retrata uma cerimônia Osage em um ambiente fechado, restrito, quase claustrofóbico, o trecho final consiste em um plano fechado que vai se abrindo até chegar a uma tomada aérea mostrando outra cerimônia daquele povo. Isso resulta em uma cena expansiva, colorida e solar, com um tom esperançoso pouco usual para o diretor – e talvez não seja um disparate imaginar que isso reflete o impacto que a história deve ter tido sobre ele neste momento de sua vida e carreira.

“Dada a quantidade de tempo e esforço que ponho num filme, não faz sentido revisitar temas similares, a menos que se possa encontrar uma nova faceta na joia, se for uma joia preciosa – a menos que se possa aprender alguma coisa fazendo o filme”, disse o cineasta naquela mesma conversa com Richard Schickel citada no primeiro parágrafo. O valor de Assassinos da Lua das Flores pode ser debatido; mas é inegável o quanto representa um aprendizado profundo para Scorsese.