O que torna cinebiografias atrativas é a simples percepção de que a produção em questão vai contar uma história real tão extraordinária, que merece ser imortalizada na ficção. O mais novo exemplo dessa lógica é Oppenheimer, um projeto que se vende sozinho graças à premissa de acompanhar ninguém menos do que o cientista conhecido como “pai da bomba atômica”. Sabendo que a forma que se conta importa tanto quanto a história em si, o filme se desdobra como um verdadeiro épico que caminha por diferentes gêneros.

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Caso você não esteja ligando nome à pessoa, não se preocupe. O longa se debruça a investigar quem foi J. Robert Oppenheimer, o físico norte-americano que liderou o programa que produziu as primeiras bombas atômicas durante a Segunda Guerra Mundial. E “investigar” é a palavra-chave aqui, já que o personagem vivido por Cillian Murphy foi uma incógnita mesmo sendo figura central de um evento histórico amplamente documentado.

O responsável por dirigir o filme e escrever o roteiro – com base em uma premiada biografia do físico – foi Christopher Nolan, diretor de A Origem (2010), Interestelar (2014) e a trilogia do Batman dos anos 2000/2010. Essas credenciais ficam claras com a abordagem do cineasta, que usa sua vasta experiência para fazer com que a primeira cinebiografia da carreira vá além de um aulão de história.

Valendo-se de ferramentas que adquiriu ao comandar longas de suspense, ficção científica, guerra e até super-heróis, Nolan cria uma estrutura que distancia Oppenheimer das cinebiografias tradicionais. Um esforço que reflete tanto a natureza dos eventos retratados quanto a ambição de quem os conta. Afinal, a produção está tão interessada no homem quanto em sua terrível obra.

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Esses dois focos dividem a narrativa, que é apresentada de forma não-linear para que ambos sejam desenvolvidos ao mesmo tempo. A produção é muito eficaz em investir em um estudo de personagem que afeta o blockbuster e vice-versa, em uma relação de causa e consequência que explica os caminhos percorridos por uma das grandes personalidades do século XX.

Pelo lado do espetáculo, o filme usa as idas e vindas no tempo para desenvolver seus personagens enquanto cria uma tensão crescente. Mais do que construir a estrada que vai levar à criação da bomba-atômica, a produção estabelece também que a história não acaba ali, alimentando a apreensão, que cresce justamente pela dificuldade em prever os caminhos que a jornada vai tomar – ao menos para aqueles menos familiarizados ao que acontece a Oppenheimer após a Segunda Guerra.

A execução desse vai-e-vem temporal começa aos solavancos, especialmente porque o primeiro ato não perde tempo e se esforça para apresentar personagens e eventos importantes ao panorama geral o mais rápido possível. Porém, a viagem se torna mais fluida e fácil de acompanhar conforme avança, em partes graças à forma como os diferentes períodos abordados na produção ganham identidades próprias que encantam e se destacam entre si sem quebrar a unidade do projeto. Um feito e tanto, considerando que muitas das peças do quebra-cabeça são visuais e só se encaixam quando a direção permite.

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O espetáculo vai se construindo em torno de uma atmosfera sinistra e melancólica que traduz a natureza paradoxal de seu protagonista e sua obra. Afinal de contas, todo o progresso científico adquirido por Oppenheimer e seu grande time é acompanhado por um poder destrutivo inominável, algo que a produção não perde de vista. São vários os momentos em que as vitórias trazem um gosto amargo que potencializam a mensagem que o filme busca entregar, ao traduzir esse contraste de forma cinemática, com sequências apoteóticas tão belas quanto assustadoras.

As várias faces de Oppenheimer

Oppenheimer se sai muito bem ao dar contornos maiores que a vida a momentos que realmente mudaram os rumos da humanidade. Porém, o filme brilha mesmo ao contar esse pedaço da história destacando o componente humano, e o faz ao conduzir um estudo de personagem que justifica a escolha de contar a história do homem que batiza o projeto.

Colaborador de longa data de Christopher Nolan, Cillian Murphy sustenta o filme ao dar vida a um retrato complexo de J.R. Oppenheimer. O ator confere humanidade ao herói falho proposto pelo roteiro ao somar firmeza e fragilidade em um equilíbrio sublime e o torna digno dessa figura retratada em suas maiores glórias e piores desgraças. A atenção é tamanha que mesmo eventos que mudaram os rumos da humanidade só são colocados na história quando afetam o cientista diretamente.

Robert Downey Jr., o eterno Homem de Ferro da Marvel, é um dos destaques do filme (Divulgação)

Falando assim, parece que Oppenheimer é um show de um homem só, mas isso passa longe de ser a verdade. Não é exagero dizer que Cillian Murphy só brilha em potência máxima por estar acompanhado de um elenco de peso que está em pé de igualdade com o astro. Não será de se estranhar que o espectador sair do filme marcado também por Robert Downey Jr., Emily Blunt, Florence Pugh, Matt Damon, Jason Clarke e Benny Safdie, entre outros.

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Cada figura cumpre um papel diferente na jornada de Oppenheimer, o que ajuda a dimensionar a complexidade de uma personalidade percebida de formas diferentes por pessoas diferentes. Pupilo, herói, inimigo, parceiro, algoz, são várias as perspectivas possíveis para o personagem, e isso traduz muito bem a incógnita que ele foi em vida. Espelhos que refletem o talento de Cillian Murphy, que dá unidade a esse caleidoscópio.

É curioso notar que esse retrato diz muito sobre como o próprio Nolan enxerga a figura do cientista. O cineasta não se esquiva dos vários erros e defeitos de J. R. Oppenheimer – seja na vida pessoal ou profissional –, além de fazer constantes lembretes de que ele era parte de um esquema maior que envolvia governo, exército e muito mais. Por outro lado, é possível perceber que a paixão que moveu o físico e as situações pelas quais passou, falam diretamente ao diretor responsável por contar sua história.

Veja bem, não estou dizendo que Nolan é algum tipo de armamentista que quis usar o cinema para celebrar a bomba-atômica, o próprio filme deixa claro que não é o caso. Mas o longa pende mais a se compadecer pelo lado trágico da história, por vezes desembocando na perspectiva do homem atormentado pela monstruosa responsabilidade que colocou nas próprias costas.

No fim das contas, mesmo consciente de que este debate é parte da figura histórica que decidiu retratar, Oppenheimer não está interessado em julgar se seu protagonista é herói ou vilão. Com suas três horas de duração, o filme usa eventos históricos para mexer com o público, e o faz graças a um trabalho de alto nível de todos os envolvidos. Afinal, se for para contar uma história real digna de nota, que seja em grande estilo.

Oppenheimer chega aos cinemas brasileiros em 20 de julho.