A era das adaptações de games já está em nós. De Sonic a The Last of Us, há casos de sucesso o bastante para impulsionar uma nova tendência, e centenas de filmes e séries de TV baseadas em jogos já estão de desenvolvimento, como Death Stranding pela A24, Fallout no Amazon Prime Video, Borderlands, entre outras.

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Neste território inexplorado, será que fidelidade ao material-base é o único critério para julgar uma boa adaptação? É possível debater tudo isso utilizando exemplos certeiros, como The Last of Us (que, frequentemente, replica o game quadro-a-quadro), mas é muito mais interessante olhar um caso mais divisivo: Halo.

Em desenvolvimento por uma década e produzida por Steven Spielberg, a série do Paramount+ se consagrou na audiência — foi renovada muito cedo — e na crítica. Mesmo assim, as reações negativas dos fãs se limitaram a comparar a produção com o jogo original e reclamar dos desvios, como o fato de Master Chief tirar o capacete ou, pasmem, ter relações sexuais.

Francamente, é uma picuinha reducionista e limitante, e que ignora completamente o ponto de que o seriado nunca se propôs a replicar o game nas telas. Desde o início, a produção afirmou que construiu uma nova linha temporal, que tocaria em eventos e personagens importantes, mas que teria dinâmicas, motivações, rostos e acontecimentos inéditos. O resultado tem perna própria e cria algo empolgante para o meio que está inserido, ao mesmo tempo que propõe novos entendimentos e perspectivas aos fãs de longa data — os que tiverem a mente aberta para ouvir, claro.

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Muito além do videogame

No universo expandido, Halo tem conflitos, eventos e tons que raramente deram as caras nos jogos [Créditos: Halo: Reach/Bungie/Divulgação]

O universo de Halo é muito mais denso do que os jogos transparecem. Desde que criou a franquia em 2001, a desenvolvedora Bungie sempre apostou em construir um mundo maior do que o game. Livros como The Fall of Reach (2001), The Flood (2003) e Ghosts of Onyx (2006), até podiam mostrar Master Chief e outros personagens dos jogos, mas o principal propósito era aprofundar a visão desse futuro militarista, da criação do projeto Spartan (os supersoldados de armadura, tipo o protagonista), do início da guerra contra os alienígenas da Covenant, e também dos intensos conflitos entre humanos que antecederam a guerra intergaláctica.

Os jogos, por sua vez, nunca conseguiram representar toda essa grandeza — o que não é exatamente um deslize, e sim uma decisão. Apesar de contratar autores de ficção científica para escrever romances ambientados no universo, ou até mesmo produzir HQs com a Marvel e animes de Halo com estúdios japoneses, a Bungie não tinha interesse em misturar as coisas. Os games tinham trama simples e eficientes, com jornadas heróicas e cheias de esperança focadas em Master Chief. O universo expandido, por sua vez, era mais sombrio, repleto de intrigas políticas, complicações militares, segredos obscuros. O triunfo da franquia é entender que um universo vivo é marcado por diferentes histórias, ambientes e tons.

Com ODST e Reach, Bungie começou a explorar o lado mais melancólico do universo de Halo nos games [Créditos: Halo 3: ODST/Divulgação]

Pouco antes de passar o controle da saga para a 343 Industries, a Bungie até tentou explorar diferentes tons nos games. Halo 3: ODST (2009) trocou o heroísmo de Master Chief por um conto melancólico de soldados tentando sobreviver nas ruínas de uma cidade na Terra, e Halo: Reach (2010) mostrou a batalha perdida de um grupo de Spartans no que é, essencialmente, o Star Wars: Rogue One da franquia. Mesmo assim, muita coisa fica de fora dos jogos.

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Uma anedota pessoal. Há quase 10 anos, o Jovem Nerd lançou três audiodramas ambientados no universo da franquia, chamados de Halocast. Fui corroteirista do projeto e cobrei muito nosso querido Alexandre ‘Jovem Nerd’ Ottoni para colocarmos o máximo de informações alheias aos games na trama. Sob a perspectiva de um hacker expondo segredos do governo e do exército, o projeto explicou as origens perturbadoras do Projeto Spartan, o primeiro contato da Covenant com os humanos, o suposto desaparecimento do Master Chief e muito mais. Na falecida seção de comentários, a principal resposta era algo como: “Eu nem sabia que Halo tinha história”.

Maior que o Master Chief

Humanização do Master Chief é um dos acertos da série de TV de Halo [Créditos: Paramount+/Divulgação]

É aí que a série de TV brilha. Desde o início, o seriado foca em elementos pouco explorados nos jogos, mas muito interessantes para a narrativa como um todo. Entre os acertos, estão a humanização de Master Chief, que se percebe como máquina ao invés de pessoa e passa a lutar contra essa programação. O arco não só dá a oportunidade do ótimo Pablo Schreiber mostrar os seus talentos — sem o capacete, é a vida —, como também antecipa e desenvolve algo que os games tentaram fazer em Halo 4 (2012) e Halo 5: Guardians (2015), mas ficou pelo caminho em Halo Infinite (2021).

Há ainda a maior presença da doutora Catherine Halsey, a criadora do Projeto Spartan. Para os amantes do universo expandido, ela é uma das figuras mais intrigantes e complexas de toda a franquia, transitando entre a frieza e a genialidade, como um Victor Frankenstein futurista. Os jogos nunca souberam como a aproveitar bem, mas a série entende o enorme apelo da doutora, muito bem interpretada por Natasha McElhone, mostrando-a em contato direto com o Master Chief e sofrendo as repercussões de ser persona non-grata entre os militares da UNSC.

Série de Halo consegue integrar a doutora Halsey a história de forma mais orgânica que os jogos [Créditos: Paramount+/Divulgação]

Mesmo as criações mais questionáveis do seriado merecem ser pensadas além da comparação simplista. Makee (Charlie Murphy), a líder da Covenant que acaba tendo um rolo com Master Chief na primeira temporada, soa deslocada no universo ao assumir o pouco convincente posto de única humana entre os alienígenas. É uma saída fácil, nascida do medo de que o público leigo não entenda o funcionamento da Covenant, mas que merece ser criticada como decisão narrativa, e não como desvio do material-base.

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A questão é que a série de Halo não está imune de errar, mas ancorar a discussão em comparações é improdutivo para todos pois limita o debate necessário e diminui os acertos, que podem ser benéficos para a narrativa e para os fãs como um todo.

Considerando que ultrapassa a necessidade de ter o console, o jogo e a habilidade necessária para jogar, a série pode ser a tão desejada porta de entrada para novatos, com um retrato autêntico do alcance e complexidade da saga ao mesmo tempo que trilha um caminho inexplorado. Para os fãs de velha data, é a oportunidade de conhecer e revisitar outros lados da franquia tão amada, com caminhos inéditos que surpreendem ao mesmo tempo que complementam a obra conhecida.

Para tudo isso, é preciso olhar além da semelhança, que é tão fácil e limitante. Talvez seja hora de parar com a exaltação à fidelidade, como se fosse a única qualidade que uma adaptação possa ter.

Halo é transmitida no Brasil pelo Paramount+, com a primeira temporada completa no catálogo e exibição semanal da segunda em andamento.

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