Poucas obras merecem tanto o título de “influentes” quanto Frankenstein. Originalmente publicado em 1818, o livro de Mary Shelley não só formou a base da ficção científica como gênero, como também inspirou inúmeras adaptações nos palcos, telas e telonas, além de inspirar obras semelhantes. E, em 2024, referenciar o famoso monstro se tornou praticamente uma tendência..
Alguns dos filmes mais empolgantes do ano são diretamente influenciados pelo clássico de mais de 200 anos atrás. Em vários âmbitos, e em diferentes escalas de produção, cinco projetos projetos mantém viva a chama da obra: Pobres Criaturas, Birth/Rebirth, Frankenstein de Guillermo del Toro, Lisa Frankenstein e A Noiva de Frankenstein, por Maggie Gyllenhaal.
O mais fascinante na tendência é como cada projeto é único, apesar do DNA em comum, o que apenas reforça como o livro de Shelley sempre esteve à frente do próprio tempo.
Criaturas para todos os gostos
Baseado em um livro homônimo, de 1992, Pobres Criaturas humaniza a criação central ao lhe dar agência e permití-la partir em uma jornada de autodescobrimento e independência. É uma releitura de Frankenstein que tira o foco do criador pela criatura, evocando toda uma nova dinâmica entre os personagens e abordagem à temática.
O filme de Yorgos Lanthimos, inclusive, demonstra o grande apelo desse tipo de história, tendo rompido a bolha dos entusiastas de gênero e conquistado 11 indicações ao Oscar 2024, ficando apenas atrás do líder Oppenheimer, indicado em 13 categorias do prêmio. E olha que Pobres Criaturas não esconde nem um pouco a própria bizarrice e reverência à obra original.
Já quem vem se consagrando especificamente entre os fãs de horror é Birth/Rebirth. O primeiro longa-metragem por Laura Moss também é uma releitura de Frankenstein, só que muito mais macabra e intimista. Aqui, uma patologista chamada Rose (Marin Ireland) consegue reanimar o cadáver da filha pequena de Celie (Judy Reyes), mas logo elas descobrem que há um alto e sanguinário preço para manter o experimento vivo.
Em entrevistas, Moss assume que a ideia do projeto surgiu não só de uma obsessão com Frankenstein, mas também de aprender sobre a vida da autora Mary Shelley, que teve inúmeros confrontos com a própria mãe (a renomada escritora feminista Mary Wollstonecraft), além de ter sofrido com abortos espontâneos em três ocasiões.
Moss explicou a obsessão ao Irish Times:
“Amo o livro pelo escopo e ambição. Para mim, supera qualquer outro clássico de autoras da época, então me interessei por Mary Shelley. Sua história de luto, abortos espontâneos, a perda da mãe e a enorme sombra que ela deixou, já que também era um ícone feminista, tudo isso me fascinou.
Adoraria levar o crédito e falar que foi uma tentativa de colocar Mary Shelley na história, mas acredito que tenha sido subconsciente. Rose, a protagonista, veio para mim como uma indagação: e se Frankenstein [o médico] fosse uma mulher que precisa usar o próprio corpo para criar coisas?”
O filme, que anda com ótima reputação no circuito de festivais de gênero, é só um exemplo da versatilidade e profundidade que há em Frankenstein. Até hoje, a história nos fascina por tocar em temas cabeçudos, como o peso da criação, o sentido da vida e a definição de ser humano. Como Birth/Rebirth e Pobres Criaturas bem demonstram, é possível ainda usar a essência da trama para explorar os perigos da maternidade e o desejo por autonomia em um mundo quebrado.
Há ainda a possibilidade de usar a história clássica com mais leveza, como é o caso de Lisa Frankenstein. A comédia de terror marca a estreia na direção de Zelda Williams, filha do lendário comediante Robin Williams.
Com roteiro de Diablo Cody (Garota Infernal, Juno), o filme toca em amor e raiva adolescente. Williams explicou à revista Rolling Stone que a ideia é criar uma obra retrô, como uma resposta a filmes como Mulher Nota 1000: “Cresci assistindo esses filmes onde constroem mulheres ideais. Sempre me perguntei onde estava a versão em que uma garota cria o homem perfeito”, falou.
Ao mesmo tempo, a trama, que segue uma garota cientista (vivida por Kathryn Newton) revivendo um cadáver da era vitoriana (vivido por Cole Sprouse), acaba tocando na temática do luto e como lidar com a perda, que são coisas que Zelda Williams teve que viver com a morte do pai, em 2014.
Segundo Diablo Cody, que escreveu o roteiro e propôs para Williams, há algo muito interessante em ter a cineasta tocando um projeto sobre essa temática sombria:
“Foi só quando ela foi contratada que percebi o quão interessante é tê-la trabalhando em um projeto sobre luto, e sobre como você é permitido a sentir uma perda, levando em conta tudo que ela teve de passar em público.”
Um clássico é um clássico
Mas não é só de releituras que a tendência se mantém. Alguns projetos em desenvolvimento buscam resgatar a obra clássica, ainda que com o charme e assinatura dos cineastas responsáveis.
O projeto mais empolgante dessa leva é, sem dúvidas, Frankenstein por Guillermo del Toro. O diretor mexicano sempre foi um grande entusiasta de filmes de monstro, e essa paixão se manifesta em uma filmografia dedicada a humanizar todo tipo de criatura. “Sou apaixonado por monstros de forma bem intimista e espiritual”, falou o cineasta em entrevista ao The Talks. “Me comovo pela criatura de Frankenstein e todos os monstros clássicos de uma forma quase religiosa.”
No caso, Frankenstein é a obra da vida de del Toro. Sua devoção ao bizarro surgiu aos 13 anos, justamente quando assistiu ao filme de 1931, com Boris Karloff como a criatura. Fascinado, foi atrás do livro de Mary Shelley, tendo-o declarado como seu “livro favorito da vida”. Assim, tê-lo enfim encabeçando uma adaptação da obra original tem tudo para dar certo.
Não bastasse o carinho do diretor pelo material-base, o elenco ainda é ótimo: Jacob Elordi (Saltburn), Oscar Isaac (Star Wars), Mia Goth (Pearl), Cristoph Waltz (Bastardos Inglórios) são só alguns dos nomes confirmados na produção, que será lançada na Netflix, sem data até o momento.
O último projeto da lista não deixa nada a dever quando se trata de elencos excelentes. Em seu segundo trabalho como diretora, Maggie Gyllenhaal quer renovar um clássico do horror: A Noiva de Frankenstein. Originalmente lançado em 1935, o filme é considerado uma das primeiras grandes sequências do cinema, frequentemente citado como à altura — ou até melhor — que o original. Uma honra grande, quando o antecessor é conhecido como uma das bases do horror nas telonas.
Assim como no filme clássico, a trama do novo A Noiva de Frankenstein acompanhará o Monstro em busca de uma companheira, mesmo que tenha que criar uma para conseguir isso. O projeto é estrelado por Christian Bale (Psicopata Americano), Penélope Cruz (Vicky Cristina Barcelona), Annette Bening (Nyad), Jessie Buckley (Chernobyl) e Peter Sarsgaard (Batman).
Poder atemporal
Assim, seja em resgates ou releituras, Frankenstein segue mais vivo do que nunca nas telonas. Longe de ser cult, o livro é muito celebrado e já se consagrou em diversas outras mídias, mas nunca é o bastante mais um lembrete da genialidade por trás de um dos pilares do horror e da ficção científica. Não que um resgate seja necessário, mas essa tendência pode sim indicar que nos conectamos ainda mais com a obra clássica nos dias de hoje.
Nos últimos anos, o cinema de horror se tornou bastante metafórico, apostando em monstros e perigos que sinalizam os males da mente e do corpo. O gênero é inteiramente construído nessa reflexão macabra do ser, mas o público moderno passou a buscar obras que enfatizam mais esses elementos — e Frankenstein é perfeito para isso.
Mesmo com mais de 200 anos de vida, a história bate perfeitamente com as sensibilidades modernas, em um mundo que constantemente questiona relações humanas, o significado de uma vida de valor e a relação com o próprio corpo, fonte de medos e prazeres em medida igual.
Como provam as várias releituras, é possível usar o conto como base para discutir dinâmicas de poder, limite dos sonhos e ambições, e um senso de autoentendimento. Além disso, por ser um marco do terror, é perfeito para reinterpretações visuais por cineastas ousados, de estilos distintos e muito autorais. Sempre há espaço para inovar em cima de clássicos.
No fim das contas, pode até ser curioso como vários projetos com a mesma essência se alinharam sem qualquer planejamento prévio, mas não é exatamente surpreendente. Mary Shelley e sua obra sempre foram fora da curva, e nem 200 anos de história da literatura e cinema são capazes de ignorar esse fato. Mais do que nunca, a autora e a obra merecem ser devidamente celebradas pela duradoura influência.